Um ano perdido e marcado pelo sentimento de impotência. Esse é o resumo feito pelo volante Fellipe Bastos, do Goiás, para descrever o que ocorreu após ter sido vítima do crime de injúria racial por parte de um torcedor do Atlético-GO durante clássico entre as equipes pela Série A do Brasileirão de 2022. Nesta segunda-feira (8), o caso vai completar um ano e sem suspeito identificado.
No inquérito, de 15 a 20 pessoas foram ouvidas pelo delegado Joaquim Adorno, que liderou a investigação feita pelo Grupo Especializado no Atendimento às Vítimas de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (GEACRI). De acordo com o responsável, o inquérito só não foi concluído porque a identificação do suspeito não foi feita.
“O sentimento é de impotência, de um ano perdido. A gente não resolveu, não achou quem fez, não puniu quem fez. O clube punido (Atlético-GO) recorreu, as coisas que tinha que pagar reduziram e quem sofreu o racismo está com sentimento de voltar toda vez no estádio e ser tratado mal. O sentimento de injustiça prevalece”, afirmou o volante Fellipe Bastos.
O volante acompanhou o início da investigação de perto. Além de depor, procurou Joaquim Adorno em duas ou três ocasiões, mas não teve novidades. A investigação confirmou, por meio de depoimentos, que Fellipe Bastos foi vítima de injúria racial - a pena para o crime é de dois a cinco anos. A foto do suspeito foi divulgada pelo GEACRI, mas a identificação não ocorreu até hoje.
“Só não posso dizer que o inquérito foi concluído pelo fato de não chegar ao autor. Lido com inquéritos há 20 anos, o Fellipe (Bastos) sofreu injúria racial. Ouvimos cerca de 20 pessoas, inclusive testemunhas que ouviram e viram o suspeito. Não tive nenhuma prova que dissesse o contrário do que o Fellipe afirmou. Todas as falas confirmaram o que ele disse”, contou o delegado Joaquim Adorno.
Fellipe Bastos foi chamado de “macaco” por um torcedor do Atlético-GO, após o Goiás vencer o Dragão por 1 a 0 em jogo válido pela 5ª rodada do Brasileirão de 2022. “Foi um trabalho de formiga. Olhamos todos os torcedores cadastrados pelo Atlético-GO (no plano de sócio-torcedor). Olhamos fotos, buscamos em nossos sistemas. A Polícia Civil estourou todas as diligências que tem à disposição para qualificar o autor. Nós temos a imagem dele, a gente sabe quem foi, mas não encontramos”, completou o delegado do GEACRI.
A investigação não foi arquivada porque o crime de injúria racial é imprescritível (além de inafiançável). Joaquim Adorno explicou que o inquérito fica de “stand by” até que novos fatos surjam. Caso o suspeito seja encontrado, a investigação tem sequência para sua conclusão e envio para o Poder Judiciário.
O jogador voltou ao Accioly em duas oportunidades para disputar clássicos contra o Atlético-GO. A primeira vez foi no dia 22 de junho, pela Copa do Brasil, 35 dias após o jogo em que ele foi vítima de injúria racial, e a outra foi neste ano, no dia 2 de abril, pelo jogo de ida da final do Goianão 2023.
“As duas vezes foi como se eu tivesse feito algo errado. Fui xingado. A torcida, na última vez, me xingou bastante quando saí do jogo. Isso é o Brasil que a gente vive, é normal”, descreveu o jogador esmeraldino.
No fim de julho de 2022, o Atlético-GO foi punido no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), inicialmente, com a perda de um mando de campo e multa de R$ 50 mil. O clube recorreu da decisão, que, em setembro, passou a ser de R$ 30 mil, e a perda do mando foi revertida em ações educativas que foram gravadas com os principais atletas do elenco (Marlon Freitas, por exemplo) e veiculadas nos jogos do clube até o final do Campeonato Brasileiro do ano passado.
Neste ano, o clube manteve ações, mas não do modo como ocorreu em 2022. Antes dos jogos do Atlético-GO, uma vez no intervalo e uma vez após o final das partidas do clube, duas mensagens escritas são exibidas no telão do Accioly e há avisos no sistema de som do estádio sobre o combate ao racismo.
Uma das mensagens diz “O respeito às cores está no nosso DNA! Quem está junto em todos os momentos não comete homofobia e nem racismo! Cante, grite e jogue junto com o Dragão”. A outra fala: “Gritos homofóbicos e racistas podem render punição ao Dragão”. Um aviso sobre os temas é reforçado pela locução do estádio duas vezes antes dos jogos, uma no intervalo e outra após as partidas.
No Accioly, só há um banner que lembra os torcedores, o que pode causar perda do mando de campo ao Atlético-GO. A mensagem cita “constranger alguém mediante violência”, “desordem”, “invasão ou lançamento de objeto (no campo)” e “qualquer tipo de preconceito, seja ele racista, homofóbico e etc…” Não há nenhuma outra mensagem em outros setores e entradas do estádio.
O banner já estava no Accioly antes do clássico do dia 8 de maio de 2022. O objeto fica localizado em frente a uma das arquibancadas destinadas aos sócios-torcedores e a cerca de 40 passos do local em que Fellipe Bastos foi vítima de injúria racial.
O Atlético-GO não respondeu aos pedidos da reportagem para comentar o assunto.
Falta de punição continua
Idealizador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho observa que o debate sobre casos de racismo e injúria racial cresceu no Brasil nos últimos anos, mas a falta de punição segue. Não é exclusivo no meio esportivo, mas, especificamente no futebol, ele entende que existe o agravante, em alguns casos, da não identificação do torcedor.
No futebol, e como ocorreu no caso do volante Fellipe Bastos, ocorrido há um ano, há imagens do suspeito. Pessoas estavam do lado da pessoa identificada pelo jogador e não fizeram nada. “No futebol, o agressor não se esconde para fazer o insulto. Está ali, todos em volta estão vendo. Há extrema dificuldade de identificar agressores. Clubes também dificultam por demorar para fornecer dados, imagens. Não é exclusivo deste caso, é comum”, comentou Marcelo Carvalho.
Para ele, os clubes evoluíram em relação aos posicionamentos. Alguns ficam do lado da vítima e dizem que vão trabalhar para ajudar na identificação, que não compactuam com o racismo, mas, segundo Marcelo Carvalho, os problemas para identificação seguem. “Clubes no Brasil ainda são reativos. Falam sobre racismo, mas ações são reativas”, salientou o idealizador do Observatório, que completou nove anos no último dia 2 de maio.
Um exemplo citado por Marcelo Carvalho sobre o comportamento das pessoas envolvidas com futebol é em relação a objetos jogados no gramado. É diferente quando a acusação é de racismo ou injúria racial.
Quando um copo é atirado em campo, o time mandante pode ser punido com a perda de mando de campo. Quando isso ocorre, torcedores do time da casa costumam identificar o outro torcedor até de forma rápida. Isso ocorreu no dia em que Fellipe Bastos sofreu a injúria racial. Na súmula, a torcedora que atirou um copo está identificada. A injúria racial foi relatada posteriormente em um adendo inserido ao documento.
“É a parte mais triste do racismo. Não sei se por medo do clube ser identificado como racista, não identificam os torcedores que cometem racismo. Já vi casos em que pessoas estão em volta (de alguém que cometeu racismo) e dão risadas. Essa é a perversidade do racismo no Brasil”, completou Marcelo Carvalho.
Marcelo Carvalho considera importantes ações como a do Atlético-GO, de mostrar imagens sobre o combate ao racismo no estádio. “Se olhar para trás, não existia nada disso. Estamos avançando, querendo ou não, no debate. Seja por ser reativo ou obrigado, é importante que aconteçam ações. É ainda mais importante manter após punição”, disse o diretor do Observatório.
Marcelo Carvalho entende também que o futebol brasileiro pode melhorar no combate ao racismo. Uma ação sugerida por ele é que os stewards (seguranças privados contratados pelos clubes) sejam orientados a ajudar na identificação de casos de racismo e injúria racial.
“Não dá mais para ver o caso como ocorreu no Inter x Nacional-URU e o cara (steward) não fazer nada. Quem trabalha no jogo precisa coibir violência e trabalhar para combater o racismo”, frisou Marcelo Carvalho. O caso é de um torcedor do Nacional-URU que imitou um “macaco” na direção da torcida.