Nos últimos 20 anos, o Estado de S.Paulo acompanhou a transformação do garoto Cacá, então com 15 anos e cujo nome foi escrito pela primeira vez nesta Casa pelo repórter Tuca Pereira de Queiroz com C, no homem Kaká, com K, campeão mundial (2002), três participações em Copas, camisa 8 do São Paulo, com histórias no Milan e Real Madrid e eleito o melhor do mundo em 2007.
A primeira reportagem sobre Kaká foi publicada pelo Estado em 18 de setembro de 1997. Ele pesava 50 quilos e tinha 1,63 metro. Duas décadas depois, agora com 35 anos e 1,86 metro, Kaká repassa a sua trajetória, guarda com carinho a primeira reportagem e diz que ainda tem fôlego para atuar por mais um ano no Orlando City, nos Estados Unidos, o seu atual clube, ou, quem sabe, de voltar ao futebol brasileiro.
Esta entrevista foi motivada por um post que você divulgou de sua primeira entrevista, quando tinha 15 anos, no Estado, dia 18 de setembro de 1997.
Foi a primeira reportagem que fizeram comigo. Eu conheci a família do Tuca (Pereira de Queiroz, repórter), que faleceu um ano depois. Guardo com carinho a reportagem. Ela é um pouco profética para mim. O título foi "São Paulo prepara Cacá (com C) para o século 21". É engraçado porque em 2000, o Levir (Culpi, ele me disse isso depois) falou que eu era um dos meninos para subir. "Eu estava de olho em você". Foi a geração do (Fábio) Simplício, Julio Baptista e Julio Santos. Só que o período em que eles subiram, setembro, eu tive uma fratura no pescoço. E não subi. Fiquei dois meses fora. Em janeiro de 2001, fui aproveitado, quando, em teoria, começava o século 21.
Você tinha 15 anos, 50 quilos e 1,63 metro? Hoje, o Kaká tem 1,86 metro e 35 anos. Você deu certo?
Posso dizer hoje que conquistei muito mais do que podia imaginar. Naquela etapa, queria chegar ao profissional do São Paulo e jogar uma vez na seleção. Queria chegar e manter o nível no time, o nível do São Paulo. Esse era o meu sonho. Conquistei mais do que isso.
O que se lembra daquele Kaká?
Me lembro que o pessoal começou a ver que eu tinha talento, mas que tinha problema de desenvolvimento. O doutor Turíbio (Leite de Barros) era o fisiologista. Me lembro direitinho. Era para saber se eu cresceria ou não. Primeiro foi o endocrinologista. Ele falou que eu tinha um atraso na idade óssea de dois anos. Não tinha o que fazer. Uma hora ela iria chegar. "Ele tem os pais altos e vai chegar a fase do estirão". Teve a nutricionista e o acompanhamento atlético. Para não atrapalhar o crescimento, não podia fazer nada com peso. A orientação foi fazer natação. Nadava três vezes por semana, com o meu pai, no São Paulo.
O Pita, ex-meia, falou na época que você tinha o toque igual ao do Careca.
Na época eu jogava de atacante. Foi o Pita que me mudou de posição. Ele disse: "com esse seu tamanho e força física, não dá para jogar no meio dos zagueiros. Vou te recuar um pouco". A mudança ocorreu por causa também do meu desenvolvimento tardio. Tenho pouco do Careca. Ele tinha mais a característica de matador. Eu não.
Você conseguiria apontar três momentos inesquecíveis na carreira?
A Copa de 2002, com certeza, é um desses momentos. Para mim, é sem dúvida o melhor da carreira. Ganhar o título, minha primeira Copa, por mais que tenha jogado meia hora apenas (contra a Costa Rica, na vitória por 5 a 2). Foi um grupo histórico. O momento de conquista mais especial da minha carreira. Depois teve a conquista da Liga dos Campeões e o prêmio de melhor do mundo, em 2007.
Quando exatamente você começou a entender quem era no futebol?
Isso acontece conforme você vai tendo maturidade. Você vai crescendo e ganhando essa maturidade, vai tendo a consciência do que representa, vai se firmando. Tinha minhas dúvidas no São Paulo: "será que vou continuar no profissional ou vou ficar descendo para o juniores?" Aí você se firma. Aí você vai para a seleção e é convocado para um ou dois jogos. Conforme vai se firmando, ganha maturidade e vai entendendo o momento (importância). Diria que com 23, 24 anos, entendi minha importância para o futebol. Entendi isso quando estava no Milan e na seleção brasileira.
Você jogou no Milan e no Real Madrid. Meu filho tem a camisa desses dois times. Para você, Milan ou Real?
É difícil escolher um. Por resultado, o Milan. Por resultado coletivo e individual, o Milan. Lá eu tive meus melhores resultados. Minha fase de Real foi importante para a minha vida profissional e pessoal, para ter maturidade, equilibrar minha vida, ver que as coisas não são as melhores do mundo. O Real serviu em todas essas áreas. Por isso falo da importância do Real Madrid. Mas por conquistas, foi o Milan.
Como foi para você ser eleito o melhor jogador do mundo em 2007?
O jogador nunca sabe adiantado. Em 2007 eram dois prêmios. Tinha a Bola de Ouro, da France Football. Para este prêmio, você fica sabendo antecipadamente. É preciso preparar as fotos para a edição da revista. Fiquei sabendo uns 20 dias antes. Avisaram o Milan. Eu fiz uma sessão de fotos. Avisei meus familiares e mais ninguém. Eles pedem para não avisar ninguém. Os jornalistas ficam especulando. O prêmio da Fifa era depois do Mundial de Clubes. Fiquei sabendo na hora. Durante o Mundial, como tenho boa relação com os caras da Fifa, tentei especular. "Olha, conta aí, sou eu?" Quando anunciaram, passou um filme pela minha cabeça. A emoção é grandiosa.
Você mencionou a Copa de 2002 como sua principal. Pensei que fosse apontar a de 2010, na África do Sul.
Hoje, olhando para trás, a que estava melhor fisicamente era a de 2006. Estava bem, sem dores, sem problemas físicos, sem nada. Em 2010, chego com lesão no adutor, tive dores nos quadris... Depois, ainda tive de operar o joelho. Em 2010, cheguei numa situação difícil em termos físicos e com grande responsabilidade porque era um dos nomes do time. Havia conflitos pessoais. Vou ou não vou? Fazia o sacrifício para ir ou não? Todos diziam que o Brasil poderia ter passado pela Holanda. Mas minha Copa foi a de 2006 (na Alemanha).
O futebol brasileiro melhorou ou piorou nos últimos 20 anos?
Ficou para trás. Ficamos parados no tempo por causa do penta. Pensamos: "deste jeito está bom, ganhamos cinco Copas. É suficiente". Mas o futebol mudou. Quando tinha 15 anos, não havia a preparação física que há hoje, a questão psicológica, mental, a tecnologia. O futebol brasileiro ficou estagnado na conquista de 2002. "Somos penta e está bom". Outros evoluíram. Agora estamos recuperando. Vimos que precisamos evoluir.
Você acha que o Brasil sempre apostou no talento individual?
Acho que a gente se apoia muito no talento dos jogadores, mas porque sempre tivemos esse talento, sempre teve alguém que fez a diferença. Mas quando você consegue fazer no coletivo a mesma diferença, sempre vai aparecer alguém no individual. É o que está acontecendo na seleção. O time vai bem e o Neymar aparece mais.
Quem são os seus amigos e parceiros na carreira, desde lá atrás?
Meu parceiro era o Marcelo Gallo, que até hoje é um amigão. Ele veio de Jaraguá do Sul (SC) para São Paulo. O que eu fazia? Os meninos que moravam na concentração do São Paulo, quando não podiam ir para suas casas, eu os levava para a minha. Eu morava perto do Morumbi. Tinha o Emerson Sheik, o Marcelo Gallo, alguns outros que não deram certo. A convivência era legal, tinha dia que eu não ia para casa, mas eles estavam lá. Continuo em contato com Elano, Roberto Carlos, Julio Baptista, Ronaldinho, Robinho... Dentro do campo, as parcerias aconteceram por épocas. No Milan foi com o Shevchenko. Na seleção, Robinho.
E o treinador que mais te marcou?
Aprendi alguma coisa com todos. O treinador com quem tive mais resultado foi o (Carlo) Ancelotti (Milan). Tenho carinho especial por ele, pela forma de ele treinar o time, pelo exemplo de liderança. Mas de todos os outros guardo carinho especial, desde o Vadão, lá no São Paulo, Nelsinho Baptista, Oswaldo (de Oliveira), Muricy (Ramalho). Na Europa, Allegri e Seedorf. Na seleção brasileira, Felipão, Parreira, Dunga.
O que o Kaká deixou de fazer nesses 20 anos que gostaria de ter feito?
Pessoalmente, nada. Eu acredito nos prós e contras, benefícios e sacrifícios. Eu fiz aquilo que gostaria de ter feito. Hoje, aos 35, se pudesse planejar minha carreira, incluiria alguns anos no futebol inglês.
E se arrepende de algo?
De nada. Sou feliz do jeito que sou, do resultado das minhas escolhas.
Quais são seus planos no Orlando?
Meu contrato acaba dia 31 de dezembro. As próximas semanas serão decisivas. Começaram as negociações e vou saber a ideia do clube para mim. Estou tranquilo. Depois, vou pensar como vai ser o ano que vem. Penso a curto prazo. Dá para jogar mais um ano numa boa.
Você ainda é feliz jogando futebol?
Sou. Sempre gostei de treinar, gosto da parte de cuidar do corpo, da parte da saúde, da performance. Gosto bastante ainda. E sinto aquele frio na barriga a cada jogo. Este é o meu termômetro e quando perder isso, vai ser hora de parar.
O Brasil pode ter o Kaká de volta?
A prioridade é continuar nos Estados Unidos, renovar com o Orlando. Se não der certo, volto para o Brasil. No condicional, jogaria sim no Brasil de novo. Não está fechado na minha cabeça que não volto mais ou que não jogo mais no Brasil.
Você foi chamado de "o novo Raí". E agora, cada vez que aparece um garoto armador bom de bola no São Paulo, falam que será o novo Kaká.
Fico feliz com isso, é bem legal.