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Briga entre KondZilla e Brasil Paralelo escancara a guerra cultural sob Jair Bolsonaro

Reprodução/Portal Kindzilla
Reprodução/Portal Kindzilla

Um contraponto musical pôs duas produtoras audiovisuais brasileiras em pé de guerra. De um lado está a KondZilla, poderosa agência de funk de São Paulo, e do outro está a Brasil Paralelo, empresa do Rio Grande do Sul que vem ganhando terreno com suas produções de cunho conservador. O mais recente desses trabalhos é um documentário sobre música.

Em "A Primeira Arte", imagens de MCs e funkeiros da produtora paulistana são exibidas sob trilha sonora tétrica e efeitos de câmera fantasmagóricos, enquanto cânones como Mozart e Monteverdi são celebrados na tela. Uma oposição que parece reeditar embates de fundo cultural no Brasil sob o governo Bolsonaro.

Ao verificar que trechos de seus clipes tinham sido usados no documentário, a KondZilla notificou a Brasil Paralelo exigindo a retirada de suas imagens do vídeo. Em debate estaria a legislação e direitos autorais.

A produtora gaúcha resolveu partir para o ataque e entrou com uma ação contra a KondZilla em maio. A Brasil Paralelo sustenta que a KondZilla a acusa indevidamente de violação de copyright.

O documentário, disponível no YouTube, está dividido em três partes. Em "Ressonância", se discutem aspectos gerais de som e música, como frequência e nota. A segunda parte, "Consonância", trata dos grandes nomes e formas musicais europeias. Em "Dissonância" -termo que pode ser traduzido como um som incômodo-, tem espaço a história da indústria da música pop anglo-saxônica dos últimos cem anos, além de breves passagens sobre o Brasil.

"A gente quis mostrar que a música é um fundamento da civilização", afirma Lucas Ferrugem, sócio da Brasil Paralelo e um dos roteiristas do documentário. "É uma retrospectiva histórica do desenvolvimento ocidental, então é impossível pular o pop, o funk, o hip-hop, o blues, o jazz."

As quase quatro horas de entrevistas e imagens replicadas de outros filmes e vídeos da internet constroem uma narrativa de antagonismos. Nela, há uma música que aspira ao belo, ao divino, ao apolíneo, e há outra que profana esses valores por razões que vão da industrialização à falta de conhecimento de quem a faz e escuta. É como se houvesse uma hierarquia, com prateleiras para o que seria "folclore", "arte", "expressão popular", "Música" com letra maiúscula.

"Para ser honesto, eu acho que, sim, existe baixa e alta cultura", afirma Ferrugem. "Mas acho que o documentário não reflete isso. Nosso papel é a função crítica, e não discutir o que é arte e o que não é. Quem seria arrogante para ter essa resposta?"

Tema de conversa de boteco e almoço no domingo, ideias sobre a natureza da cultura vem sendo amplamente discutidas nas ciências sociais e nas artes desde o início do século 20. Na música, o debate ganha forma primeiro em dois polos -nas expedições de etnomusicologia que, como subproduto da empresa neocolonial, se dedicam a pesquisar músicas não europeias a partir do século 19, e, anos depois, no desenvolvimento de teorias críticas por nomes como Walter Benjamin e Theodor Adorno -ferrenho crítico do jazz.

Nos anos 1970, pensadores como Stuart Hall e Pierre Bourdieu avançaram na questão ao estabelecer recortes e vínculos entre cultura, individualidade e classe. Seus estudos sobre identidade e capital cultural vão reverberar em dinâmicas atuais, como onivorismo cultural e cosmopolitismos. Termos que, numa era de música abundante, se refletem em marcadores sociais como o chavão "eu escuto de tudo".

Essa frase descolada não tem vez em "A Primeira Arte". Amarrado por falas de uma dezena de homens brancos -músicos e filósofos e um editor de site opinativo-, o projeto da Brasil Paralelo é de caráter subjetivo, metafórico e anedotário. Isso não seria problema, não fosse a aura universalista e maniqueísta que pretende ter a obra. Em vez de ser um filme sobre música, é um filme sobre ideias sobre música. E muitas dessas são ultrapassadas ou questionadas como lugares-comuns pela pesquisa ou por artistas.

Há, por um lado, o pressuposto da sofisticação. Segundo essa linha, a complexidade encontrada em grandes nomes como Bach é o devir da música. Suas fugas e contrapontos de enorme dificuldade seriam o apogeu da arte. "Tem uma virtuosidade técnica aí que não é alcançada por outros gêneros", diz Ferrugem. "Uma sinfonia com mil pessoas de Mahler é uma conquista da humanidade."

Há no documentário também um apreço pela ideia do autêntico, visto em menções à Bíblia e ao folclore, obra de um povo que guardaria tradições e formas anteriores a qualquer indústria. Surge na tela Ariano Suassuna, em trecho de uma palestra, disparando ataques jocosos à banda paraense Calypso. Escritor inconteste, Suassuna carrega controvérsias como homem político. Quando secretário da Cultura de Pernambuco, na década de 1990, era avesso ao movimento manguebeat.

Esses dois eixos delimitam todas as tentativas de análise do documentário da Brasil Paralelo. Mesmo quando ameaça escapar aos ditames da música de tradição europeia, "A Primeira Arte" fica preso às supostas sofisticação e autenticidade. A produção celebra a inventividade da música do século 20, mas apenas no caso do atonalismo de Claude Debussy. Quando se propõe a pincelar o hip-hop, questiona ao espectador por qual razão o rap teria perdido o "seu elemento de protesto".

O resultado é uma ode ao passado, um passado imaginado e seletivo. Talvez por isso, ou por um ímpeto megalomaníaco, há inclusive erros e omissões sensíveis na produção.

A afirmação de que o jazz era uma música que reunia famílias, por exemplo, não bate com o conflito racial americano que atravessa o gênero principalmente na primeira metade do século 20. Ao louvar Richard Wagner, o documentário não menciona que, embora tenha sido uma espécie de pop star em vida, sua obra não era unanimidade em seu tempo. A estreia do compositor em Paris, em 1861, foi incompreendida pelo público segundo relatos e escritos da época.

A realidade da produção musical e fonográfica brasileira não poderia estar mais distante daquilo que é bem quisto em "A Primeira Arte". Pouco se fala de grandes compositores do país, mesmo abordando música de câmara ou de formas nacionais como modinhas e lundus do século 19 e a queridinha bossa nova.

O ritmo, elemento de grande protagonismo em gêneros como o samba, também serve a antagonismos no filme. "O ritmo toca o corpo, a melodia e a harmonia tocam a alma", diz um dos entrevistados da Brasil Paralelo. Gráficos de projetos realizados por dois sites de análise de dados se sucedem à fala como forma de sustentar o argumento de que a música, hoje, se tornou um pastiche fundado no batuque e na batida.

Entram nesse balaio o sertanejo pop, o trap, a pisadinha, e o funk, ilustrado por clipes da KondZilla. As imagens são acompanhadas por um narrador que fala de sexualização, materialismo, infidelidade e violência.

"A nossa intenção foi falar da história da música, e não é uma questão de que uma parte a gente gosta, outra parte não gosta", diz Lucas Ferrugem, sócio da produtora. "O funk apareceu no Brasil como uma coisa muito divertida, bacana, folclórica e sempre foi legítima. O que não gosto é quando essa música tenta passar uma imagem de objetificação da mulher, de destruição da mulher."

Segundo Caio Mariano, advogado da KondZilla, a lei que teria permitido o uso dos clipes da produtora não deve ser vista como carta branca. "A Brasil Paralelo fez um documentário sobre música e, ao abordar o universo funk, utilizou materiais da KondZilla Filmes sem autorização e de uma forma distorcida com claro intuito preconceituoso sobre o gênero", diz.

Ambas as produtoras travaram um primeiro debate acerca da questão, mas não houve acordo. "Foi um contato diplomático", afirma Ana Flávia, advogada da Brasil Paralelo. "O documentário não faz nenhum tipo de discussão para analisar pessoas, mas, sim, analisar estilos. E há menção a todas as fontes, isso traz uma segurança jurídica para a gente."

A KondZilla tomou conhecimento do processo a partir do contato da reportagem. "Não atenderam a nosso pedido de retirar os trechos dos nossos clipes e agora ficamos sabendo dessa judicialização", diz Mariano, por telefone. "Não vamos nos manifestar previamente. Da forma como foi utilizado [o material da KondZilla], com o intuito de ser um preconceito, é óbvio que causa prejuízo."

A KondZilla é hoje uma superpotência do funk, uma holding com quatro empresas que vai além da produção de videoclipes. Sob o comando do fundador da companhia, Konrad Dantas, estão o gerenciamento de artistas populares do funk e do atual pop brasileiro -como Kevinho e Kekel-, parcerias publicitárias com marcas de peso e uma série da Netflix em vias de lançar a segunda temporada, neste semestre.

A caminhada para o sucesso da KondZilla não é tão diferente assim dos passos dados pela Brasil Paralelo. Ambas começaram de forma independente, apoiadas na distribuição online de seus vídeos, de maneira gratuita. As duas afirmam prescindir de dinheiro público. A Brasil Paralelo, aliás, relembra constantemente esse fato em suas redes sociais.

O projeto de ambas, contudo, pouco tem em comum. Embora tenha surgido às margens do que é legitimado como cultura brasileira, hoje a KondZilla é centro de um universo pujante. Ano após ano o funk vem se confirmando como um dos estilos mais ouvidos do país, segundo as plataformas de streaming. Ainda assim, o gênero tem em seus principais atores o alvo de discriminações. Em fevereiro deste ano, o MC Salvador da Rima foi preso sem justificativa pela polícia de São Paulo enquanto estava na casa de um amigo.

A julgar pelo documentário "A Primeira Arte", a Brasil Paralelo refuta não só produtos do pop atual, como também rechaça a estrutura da indústria com que lucram. A própria natureza da produtora parece conflitar com esses ideais. Na internet, ser pop é fundamental para conquistar altas cifras -sejam elas das plataformas como o YouTube ou de assinantes, caso da empresa gaúcha.

No Brasil, já data de décadas esse embate que opõe gêneros e formas musicais, que contesta estruturas e legitimações de lugar e classe.

Um dos maiores sambistas do país, o baiano Riachão escreveu sua primeira música ao ler numa capa de jornal que só no Rio de Janeiro é que se sabia compor sambas. Nos anos 1950, João Gilberto causou discórdia entre os ouvidos acostumados aos vozeirões da rádio e entre a nascente crítica musical brasileira -nos moldes da relação entre Adorno e o jazz, o pesquisador José Ramos Tinhorão critica a bossa nova de um ponto de vista marxista.

Conhecido nos anos 1980 por seu programa em que quebrava discos de artistas brasileiros -de Lobão a Caetano Veloso-, Flávio Cavalcanti não é tão diferente assim do histriônico Sikêra Jr. e seus ataques ao funk.

O que se vê hoje, contudo, é o limiar das orientações políticas e filosóficas tomando o palco. Se é incongruente ler a música fora desse campo -assim como não é factível apartar essa arte de recortes de gênero e raça-, no Brasil do governo Bolsonaro a música se torna o próprio campo de batalha. É, por exemplo, o caso recente do Festival de Jazz do Capão, na Bahia. Na ocasião, a Secretaria Especial da Cultura negou financiamento público ao evento em parecer que menciona Deus e alma como fins últimos da música.

Versão tão diversa quanto essa ou quanto ao imbróglio entre KondZilla e Brasil Paralelo é o que tem vivido Thiago Barbosa Alves de Souza. Além de ser pianista, ele faz seu doutorado na Universidade de São Paulo, onde pesquisa o trabalho de produtores de funk da cidade. No começo de julho, ele foi convidado pela Secretaria de Cultura a levar seu trabalho ao Theatro Municipal como parte dos preparativos para o centenário da Semana de 1922. Sobre o palco, sentado ao piano de cauda, o jovem tocou trechos de peças de compositores clássicos brasileiros, como Villa Lobos, e também de funkeiros, como DJ Ery.

Nenhum vídeo ou áudio da apresentação foi divulgado até o momento, mas uma série de fotos no Instagram em que o pianista fala da experiência foi suficiente para gerar polêmica. Comentários desfavoráveis à performance começaram a surgir em grupos e perfis online dedicados a canto lírico ou música de câmara. "As pessoas nem têm noção do que fomos fazer ali, mas só de ver a foto já teve gente que falou que a estávamos excluindo a ópera", diz o artista e pesquisador. "O preconceito é demais."

Barbosa tem formação de conservatório e resolveu pesquisar funk ao entrar no curso de música da Unesp. "Na graduação comecei a me descontentar com essa estrutura de ensino, comecei a ver que ali tinha moralismo, racismo, preconceito", diz ele.

Hoje, o perfil Canal do Thiagson no Instagram tem cerca de 8.500 seguidores que acompanham sua pesquisa, além de explicações bem-humoradas e detalhadas sobre funk.

Por causa do sucesso nas redes sociais, o jovem foi convidado por um coletivo de historiadores marxistas a analisar o documentário "A Primeira Arte" numa transmissão na plataforma Twitch. "Existe um moralismo, uma inadequação ao presente, e uma visão apocalíptica que funciona bem", diz ele. "Esse discurso do apocalipse funciona para documentários de esquerda ou de direita, porque dá uma visão de que o passado era melhor."

A apresentação de Barbosa no Municipal soa como uma síntese dessa díade que, no caso da KondZilla e da Brasil Paralelo, virou caso de Justiça.

"Se o funk está no Theatro Municipal, aquele espaço se torna mais familiar e mais pessoas podem frequentar", diz ele. "E também para que essa cultura erudita não morra de vez, porque é algo restrito, é importante esse diálogo com a sociedade."

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