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'Cena do beijo é ato de resistência', diz ator trans de 'Salve-se Quem Puder'

Reprodução/Instagram
Bernardo de Assis

A novela "Salve-se Quem Puder" (Globo) terá nesta quarta-feira (14) uma cena que já nasce histórica: o primeiro beijo entre um homem trans e uma mulher cisgênero da TV aberta brasileira. "Ele está em um contexto que representa muito mais do que um beijo. Não é só um beijo gratuito, um beijo romântico. É um ato de resistência", diz o ator Bernardo de Assis, 26, um homem trans, que protagoniza o momento ao lado de Juliana Alves, 39.

Na história, Renatinha, vivida pela atriz, e Catatau, personagem de Assis, estão cada vez mais próximos e encantados um pelo outro. O beijo vai coroar essa paixão, ao mesmo tempo em que vai combater o preconceito de ex-colegas dele, da época em que fazia ginástica artística.

"Quando nós lemos a cena, eu e a Ju ficamos muito felizes e percebemos que era muito importante e muito representativo esse beijo", afirma o ator.

Desde que a gravação da cena foi divulgada pelo jornal Extra, no fim de junho, Assis relata que, embora tenha recebido muitas mensagens de carinho, os ataques de ódio ainda são maioria nas redes sociais. Mas ele optou por ignorar os haters. "Eu estou bem mais tranquilo e de fato focando nas mensagens positivas."

Para Bernardo de Assis, o afeto entre Catatau e Renatinha é relevante como forma de abrir portas para novos artistas e narrativas. "Eu tenho plena consciência de que passo por isso agora, por esses ataques de ódio, para que no futuro as pessoas não precisem passar por isso. Para que essa questão seja cada vez mais naturalizada e as pessoas possam compreender os nossos corpos, a existência dos homens trans."

O ator salienta que a cena vai ao ar em uma novela leve e que tem um tom cômico. "Porque quando a gente tem referências trans [na dramaturgia], é em um lugar de sofrimento e dor, e isso existe, obviamente. Mas existem também outras coisas, a gente não é só isso. A gente também ama, a gente também quer ser amado, a gente também quer trabalhar e ter oportunidades", destaca.

Poder ser uma referência para pessoas que estão passando por algo parecido com o que ele enfrentou em sua trajetória para se assumir transgênero é outro ponto alto ressaltado pelo ator. "Imagina se eu tivesse tido essa referência [da novela] quando era mais jovem, como isso poderia ter mudado a minha vida. Eu poderia ter me entendido muito mais cedo."

"Infelizmente não foi assim, mas que bom que está sendo agora, que o assunto está entrando nas casas brasileiras, nas famílias. Gostando ou não, o tema está aí, e as pessoas estão falando sobre isso."

Ele relata que desde a puberdade se sentia deslocado. "Durante a minha adolescência fui conversando com algumas pessoas, estudando, e em determinado momento eu entendi que não era mulher", conta.

"Mas eu não tinha repertório, eu não conhecia os termos, então eu não sabia o que eu era", completa. Foi graças ao trabalho como ator --arte que o encantou quando ele pisou pela primeira vez em um teatro, aos seis anos-- que ele passou a se entender e se assumir como um homem trans.

Esse esclarecimento veio a partir da peça "Bird", de 2015, que a diretora e dramaturga Livs Ataíde o convidou para fazer. O espetáculo, segundo ele, era uma grande metáfora do que é a transexualidade. Na peça, ele interpretou Maria Elisa, jovem que tem grande desejo de ser homem e, da noite para o dia, acorda com todas as características masculinas.

"Conforme os ensaios foram acontecendo, eu ficava extremamente incomodado, porque as cenas eram muito difíceis para mim, principalmente as cenas da Maria Elisa com a mãe", relembra.

Aos poucos, ele afirma ter entendido que sua vida se confundia com a ficção. "Quando estreamos 'Bird', eu já me assumi como ator. Esse espetáculo me trouxe uma nova vida, em um momento conturbadíssimo e de muita dor."

Assis conta que, ao iniciar a transição, seus pais não o aceitaram e ele perdeu contato com a família. "Eu fui acolhido por um casal de tios, que comprou essa briga e falou: 'a gente está com você, você tem amor e casa aqui conosco'. Eles acabaram assumindo esse papel de pai e mãe para mim." Ele diz ainda que, ao longo dos anos, recuperou o contato com a irmã e as sobrinhas, mas não com os pais.

Se por um lado o teatro o salvou, após se assumir homem trans ele enfrentou tempos difíceis, pois não conseguia trabalhos na área. "Porque eu já não era atriz, então eu não fazia personagens femininos. Ao mesmo tempo eu não era ainda considerado homem suficiente para fazer personagens masculinos... Eu não era enxergado como ator, ficava num limbo, não fazia nada."

Mas aos poucos ele foi conseguindo atuar em produções audiovisuais, como a série "Todxs Nós", da HBO, e "Noturnos", do Canal Brasil. "Salve-se Quem Puder" é a sua estreia em novelas. "Acredito que por conta desses meus outros trabalhos, por ser um artista trans e por ter representado muitos papéis de homens trans, eles me chamaram para fazer parte da trama."

Além da novela, que teve toda a sua parte final gravada no segundo semestre de 2020, o ator roteirizou, dirigiu e produziu dois curtas documentais no ano passado: "Boreal", que acompanha a drag queen Gervasea Boreal em suas ações de distribuição de marmita, cobertores e kits de higiene para pessoas em situação de rua; e "Filho Homem", em que aborda as diferenças e proximidades no crescimento dele e do seu irmão cisgênero.

"É um texto muito pessoal e, ao mesmo tempo, fictício", diz sobre o segundo projeto. Agora, Bernardo de Assis quer levar as produções para festivais. "Quero muito continuar minha pesquisa, não só na frente das câmeras, mas no processo de escrita de roteiro e produção. Estou nesse processo de escrita, e sempre aguardando convites para novos projetos."

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