“Comedor de cuscuz com leite do peito da vaca e queijo de coalho não se derruba fácil”, repetia o cantor paraibano de forró Genival Lacerda, 89. Ontem, a Covid-19 calou o rei do duplo sentido. Ele é autor, entre outros sucessos, de Severina Xique Xique, Radinho de Pilha e De Quem É Esse Jegue?.
Lacerda resistiu até onde deu. Com sobrepeso, hipertensão e diabetes, conseguiu sobreviver a um AVC, um acidente vascular cerebral, em maio do ano passado. Por causa do coronavírus, estava internado desde o dia 30 de novembro. A morte foi confirmada por parentes nas redes sociais. O músico trabalhou até antes da pandemia. No Carnaval do Recife, se apresentou com vigor ao lado do filho João Lacerda, que segue os mesmos passos do pai como cantor.
Nascido em Campina Grande, no interior da Paraíba, gravou mais de 50 discos na carreira. De uma geração pós-Luiz Gonzaga, o forró sempre foi sua base. Contraparente de Jackson do Pandeiro - a irmã dele era casada com o irmão do Rei do Ritmo - Genival chegou a gravar, em 1998, um tributo em sua homenagem. Mas foi a partir de letras com duplo sentido, por meio de parcerias com o compositor paraibano João Gonçalves, que ele explodiu.
Escutou, em 1975, o Brasil cantar o verso “ele tá de olho é na butique dela”, da música Severina Xique Xique. Vendeu mais de 800 mil cópias. Depois veio Radinho de Pilha, com o refrão “ela deu o rádio e não me disse nada”. Sempre bastante ativo e atento à evolução tecnológica, fez uma espécie de atualização da música, em 2016, ao lançar o clipe de Me Dê o Seu Wi-Fi. “Eu digito, boto a senha e não vejo nada demais”, completava o refrão.
Veia cômica
A veia cômica do paraibano se confundia com a música. Na verdade, fazia parte dela. Contracenou com o ator Lúcio Mauro. Do programa de comédia em que os dois participaram juntos na televisão, surgiu o LP As Trapalhadas de Cazuza e seu Barbalho, em 1970. Em 2010, gravou ao lado de Ivete Sangalo, um dos principais nomes da axé music, a música O Chevette da Menina. “Coitadinha da Ivete. Facilitou, estragaram seu Chevette. Mas coitadinha da Ivete. Em menos de uma semana, estragaram o seu Chevette”, cantaram em dueto.
O pesquisador de música popular e crítico musical José Teles destaca a origem artística de Lacerda sedimentada na base do forró. “É sem dúvida um dos grandes nomes do forró. Ninguém conhece direito a obra dele antes de Severina Xique Xique, quando estourou com o duplo sentido. Ele tem uma obra fantástica”, afirma.
Em entrevista concedida a Teles, Lacerda contou como foi feita Severina Xique Xique. “João Gonçalves chegou lá em casa, num domingo de manhã, me dizendo que trazia uma música que era a minha cara. Contou que tinha oferecido a Jackson (do Pandeiro) e o Messias Holanda, mas eles não quiseram. Como é a história? Se esses cobrões não quiseram , sou eu que vou querer? “, questionou. Lacerda decidiu gravar. “Disse a ele que ia ficar com a música, mas antes ia dar uma arrumada, botar uma meia sola nela”, contou.
Censura
Teles explica que João Gonçalves, também de Campina Grande, foi um dos compositores mais censurados da música brasileira. Em relação a Lacerda, destaca que sempre foi um artista performático no palco. “Ele foi marcante no palco, mesmo antes de Severina Xique Xique. Era histriônico. Fazia careta, pulava, sentava. Ele levantava o povo, muito antes de fazer sucesso como ele fez”, afirma.
Lacerda morava no Recife há mais de 25 anos. Até antes da pandemia, costumava jogar seu dominó na avenida Boa Viagem na companhia de amigos. Desde o início dos casos provocados pelo novo coronavírus, estava recolhido em casa, no bairro de Boa Viagem, na zona sul do Recife. Morava só com João Lacerda, um dos filhos, que escreveu um texto lamentando a morte do pai numa rede social. “Hoje um perdi um dos maiores amigos de minha vida.”
Familiares relatam que ele começou a sentir os primeiros sintomas no dia 29 de novembro do ano passado. Estava ofegante e se sentindo indisposto. Foi levado a um hospital particular, onde foi detectada a infecção pelo novo coronavírus e internado no dia seguinte.
Meio artístico lamenta morte
A notícia da morte do cantor paraibano e ícone do forró Genival Lacerda, por complicações da Covid-19, foi recebida com tristeza no meio artístico. Nas redes sociais, artistas lamentaram a notícia e ressaltaram a importância de Genival Lacerda para a música popular brasileira. “A música de Genival Lacerda era pura alegria. Queria agradecer por cada sorriso. Sinto muitíssimo que ele vá embora assim. Um abraço carinhoso para a família”, publicou a cantora Daniela Mercury, no Twitter.
O rapper Marcelo D2 lembrou a típica pose que o cantor fazia ao dançar. “Essa é a imagem que fica para mim de Genival Lacerda. Essa dança dele com a mão na barriga me faz lembrar a alegria do Brasil, me conecta muito com meus antepassados e me trás uma sensação boa de felicidade. Que descanse em paz.”
Alegria também foi a palavra usada pelo apresentador Serginho Groisman em sua homenagem. Na rede social, ele publicou uma foto com o cantor em seu programa Altas Horas e escreveu “fica em paz, querido Genival Lacerda, teu legado é a alegria.”
Lulu Santos postou uma foto do cantor paraibano com um símbolo de coração e lembrou trechos de Severina Xique Xique e Radinho de Pilha, algumas das composições de maior sucesso de Lacerda.
O perfil da banda Pato Fu, que gravou uma versão de Severina Xique Xique, compartilhou vídeo do artista agradecendo pela homenagem e disse que o cantor “Iluminou o mundo com seu talento, carisma e bom humor”.
No Twitter, o músico e apresentador Luiz Thunderbird lembrou a simpatia de Genival Lacerda e lamentou a morte de mais um artista por Covid-19.
“Conheci Genival Lacerda na rua, ali em frente ao prédio da Folha de S.Paulo. Ele foi de uma simpatia incrível. Ele criou um estilo muito pessoal na música. Mais uma vítima da Covid-19. Muito triste!”
Da nova geração do forró, Luan Estilizado deixou sua mensagem também com uma foto em toca ao lado de Lacerda. “Hoje a Severina Xique Xique fechou as portas da boutique, mas nos deixou um legado. Obrigado eterno Genival Lacerda por contribuir com a nossa cultura, nossa música popular brasileira, você nos proporcionou grandes alegrias e sempre será referência pra nós”, escreveu.