BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) - Um grupo de amigas conversa no adro da igreja Santo Afonso Ligório, no bairro Renascença, região nordeste de Belo Horizonte. Era uma noite no ano de 1958. Outra amiga se aproxima e apresenta ao grupo uma menina que a acompanhava e havia acabado de chegar à cidade.
"Essa aqui é minha prima que veio do interior. Vai fazer um teste. Vai trabalhar na fábrica de tecidos." A moça apresentada era Clara Francisca Gonçalves. Tinha 16 anos. Menos de uma década depois, entrava para a história da música brasileira como Clara Nunes, sobrenome que assumiu da mãe, Amélia Gonçalves Nunes, morta durante sua infância.
O relato sobre a apresentação da garota recém-chegada à cidade veio de uma das amigas da artista que estavam naquela noite no adro da igreja, a jornalista Neide Pessoa, de 86 anos.
Clara Nunes passou no teste e conseguiu o emprego na fábrica de tecidos, que funcionava no Renascença. Trabalhava durante o dia na empresa e, à noite, se apresentava como cantora de bandas de baile em Belo Horizonte.
Depois conseguiu um emprego na Rádio Inconfidência, onde fez sua primeira gravação, uma participação no disco "Os Vibrantes 25 Anos da Rádio Inconfidência", em 1961. Em 1965 se mudou para o Rio de Janeiro e lá acabaria se filiando à Portela. No ano seguinte foi lançado seu primeiro LP, "A Voz Adorável de Clara Nunes".
Ao todo foram 17 discos, que a tornaram a mineira mais baiana do país, com canções que celebram o samba e os orixás do candomblé e da umbanda. O último "Nação", é de 1982, ano anterior ao de sua morte, ocorrida há 40 anos, em 2 de abril de 1983, após um choque anafilático depois de se submeter a uma cirurgia de varizes.
Clara Nunes nasceu em 12 de agosto de 1942 no distrito de Cedro, que à época pertencia ao município de Paraopeba, na região Central de Minas Gerais. O distrito foi emancipado e hoje se chama Caetanópolis.
Dois motivos a levaram a deixar a cidade do interior do estado. Um foi o assassinato, pelo irmão, de um namorado que a importunava por não aceitar o término do relacionamento. O outro foi a procura por emprego, conforme relata seu sobrinho, Marcio Guima.
Apesar do trabalho na fábrica de tecidos, a artista nunca escondeu seu principal desejo. "O que eu ouvia sempre dela era que queria ser uma grande cantora e vender muitos discos", conta Neide.
"Ela trabalhava na Rádio Inconfidência e para ir ao serviço pegava um ônibus que passava na rua aqui de cima. Quando demorava muito, descia a rua correndo para tentar pegar um outro ônibus, que passava na rua de baixo, e não chegar atrasada", diz a amiga.
Clara Nunes foi criada por uma irmã mais velha, Maria Gonçalves, que chamava de Dindinha. Seu pai morreu de infarto quando tinha quatro anos. A mãe morreu de câncer dois anos depois. A mudança para Belo Horizonte ocorreu via outra irmã, Vicentina Pereira, que morava na capital.
O sobrinho Marcio Guima, de 58 anos, conta que, apesar da fama, a cantora manteve a humildade e fazia questão de, aos fins de ano, visitar a família no interior. Filho de dona Vicentina, ele é o autor de uma das últimas fotos da tia entre parentes, durante o natal de 1981 em Cachoeira da Prata.
Em família, sempre com alguém ao violão, a tia não entoava seus sucessos. "Ela cantava serestas que aprendeu quando nova", afirma.
Os irmãos Marcio Guima, Mauro Guimarães e Guel são os herdeiros musicais da cantora, e criaram o trio "Sobrinhos da Clara". Em agosto, a banda fará a abertura do 18º Festival Clara Nunes, em Caetanópolis.
Guima lembra de uma conversa com a tia pouco antes da sua morte. "Eu já tinha falado com ela que também queria mudar para o Rio de Janeiro. Em fevereiro de 1983, nós voltamos a falar, por telefone. Ela disse que faria uma pequena cirurgia, e que, depois disso, a gente conversaria."
Os dois não voltaram a entrar em contato. A cirurgia ocorreu em 5 de março. Depois de quase um mês internada, no dia 2 de abril, a cantora morreu. "Ela ainda me pediu, durante a conversa, que não contasse para a minha mãe sobre a cirurgia, porque ela ficaria preocupada", recorda Guima.
Um memorial em Caetanópolis abriga cerca de 10 mil itens pessoais da cantora como prêmios, fotos, recortes de jornais e revistas e vestidos. O acervo foi enviado pelo viúvo, Paulo César Pinheiro, à prefeitura de Caetanópolis depois da morte da artista.
Os itens foram transferidos da prefeitura para dona Maria Gonçalves, a irmã que criou Clara Nunes, e continuava morando em Caetanópolis. Não havia, porém, um local adequado para guardar e fazer a exposição do acervo ao público. Tudo ficava na casa de dona Maria.
Em 2005, um sobrinho da artista, Sued Gonçalves, doou uma casa que poderia ser usada para abrigar o memorial, a ser administrado pelo Instituto Clara Nunes, que acabara de ser criado. Ainda não havia, no entanto, recursos para que a casa fosse reformada e adaptada para receber o acervo.
Quatro anos depois, em 2009, uma matéria publicada pela repórter Alessandra Mello, do jornal Estado de Minas, que havia ido ao Festival Clara Nunes daquele ano, falou sobre a falta de um local adequado para abrigar o acervo, conforme afirmam o curador do instituto, Marlon de Souza Silva, 40, e Marcio Guima.
Após a publicação da matéria, um deputado estadual à época, Ademir Lucas, foi até Caetanópolis e comunicou à família da cantora que faria uma emenda parlamentar de R$ 200 mil para que o memorial pudesse funcionar. O dinheiro saiu e o memorial foi inaugurado em 2012.
Segundo o curador Marlon, outros 2.000 itens pessoais da cantora ainda estão por ser catalogados em Caetanópolis. "São, em sua maioria, fotos de família", diz o responsável pelo acervo. Um dos itens ainda não catalogados, conforme Marlon, é o álbum de casamento de Clara Nunes.
Dentro das comemorações dos 81 anos da artista, em agosto, o curador afirmou que será lançada uma fotobiografia da cantora.