Histórias reais de assassinos sempre fascinaram o cinema. Clássicos como Jack, o Estripador, Zodíaco, Helter Skelter, Monster e os mais recentes Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal e Mindhunter formam uma longa lista de crimes roteirizados. É o que pode explicar a grande curiosidade despertada pelo anúncio recente da produção de um filme sobre o chamado Caso Von Richthofen.
Discussões sustentadas por convicções pessoais, pela atual polarização do País, especulações e fake news colocaram Suzane Von Richthofen, 17 anos após o assassinato de seus pais, nos trending topics do Twitter, tornando-a novamente um dos assuntos mais comentados na internet.
O crime é conhecido: réus confessos, Suzane Von Richthofen e os irmãos Daniel e Cristian Cravinhos foram condenados a quase 40 anos de prisão pelo assassinato dos pais dela, Marísia e Manfred, em 2002. Ainda são desconhecidos os motivos que levaram uma jovem de 18 anos, de classe média alta, filha de uma psiquiatra, e um rapaz de 21, considerado na época um dos melhores construtores de aeromodelo do País e competidor de provas internacionais, a cometerem tal crime.
“Foi uma história que marcou muito justamente pelo horror que a rodeia, então, é natural as pessoas terem opinião sobre o assunto e acreditarem que sabem de tudo. Algumas falam com uma convicção que parecem até ter vivido o caso. Mas, nem tudo o que ouviram condiz com a verdade”, diz a atriz paulistana Carla Diaz, que vai viver Suzane em dois filmes que vão estrear simultaneamente em 2020: A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou Meus Pais. “Muitos acreditam que vamos homenageá-la ou deixá-la no lugar de celebridade. Pelo contrário, vamos contar de fato o que aconteceu.”
Aos 28 anos, dos quais 26 de carreira, a atriz sabe o tamanho do desafio. “É muito diferente de tudo o que já fiz, por isso me chamou a atenção. Todo ator busca personagens que o tirem da zona de conforto. Gostamos de conhecer o novo, mesmo que isso possa parecer surreal”, comenta.
Durante a preparação, Carla estudou minuciosamente os autos do processo. E, junto com o restante do elenco, teve acesso a áudios, vídeos e documentos. Eles participaram também de um workshop com Ilana Casoy, criminóloga que, na época, acompanhou as investigações, a reconstituição do crime e lançou um livro sobre o caso.
Fisicamente, Carla precisou mudar – emagreceu cinco quilos e perdeu massa muscular para interpretar Suzane desde os 15 anos até a idade do crime. “Na década de 1990, quase não existia musa fitness”, brinca ela, que também contou, pela primeira vez, com o acompanhamento de uma coach, a atriz Larissa Bracher, na criação do personagem.
“Tivemos o cuidado de separar o material verídico das fakes news. Fiz descobertas durante esse processo – a gente se transforma e vai aprendendo várias coisas”, diz a atriz.
Para garantir fidelidade ao que foi narrado nos depoimentos oficiais de Suzane Von Richthofen e Daniel Cravinhos, a produção decidiu retratar o caso pelos dois pontos de vista mencionados durante o julgamento. A ideia de abordar desta forma partiu dos roteiristas Ilana Casoy e Raphael Montes, autor de livros policiais. Eles se juntaram à equipe a convite do produtor Marcelo Braga e do diretor Maurício Eça que, junto com os demais produtores, decidiram dividir o projeto em dois filmes, que serão exibidos em sessões alternadas.
“Gostamos de brincar que fazemos a Ruth e a Raquel (irmãs gêmeas vividas por Glória Pires na novela ‘Mulheres de Areia’), porque são duas versões que retratam o depoimento de cada envolvido de maneira diferente, portanto acaba sendo dois personagens”, diverte-se o ator Leonardo Bittencourt, que interpreta Daniel.
O processo de produção de dois filmes simultaneamente é algo novo para toda a equipe. “Uma vírgula, às vezes, pode nos confundir em qual momento estamos, na versão do Daniel ou na da Suzane. Temos cenas espelhadas e as gravações ocorrem ao mesmo dia, por isso que o Leonardo brinca que estamos fazendo personagens gêmeas, pois são parecidas e, ao mesmo tempo, apresentam nuances”, explica Carla.
A ideia de transformar o caso em filme partiu de Eça. “O caso da Suzane é um entre muitos no País, mas, por que todo esse interesse? Porque ela é rica, é bonita, enfim, isso não cabe a nós julgar”, afirma ele.
Os dois filmes vão retratar a história desde o momento em que Suzane e Daniel se conheceram, em 1999, até o dia do crime, 31 de outubro de 2002. A base narrativa é o julgamento que ocorreu quatro depois, em 2006. Por meio de flashbacks, os longas mostrarão como foram esses anos de convivência na versão de cada envolvido.
Segundo os produtores, os condenados não tiveram nenhum contato com os atores e nada receberão pelos filmes, seja da bilheteria ou de direitos autorais. “Por uma questão de princípios, decidimos seguir rigorosamente o que estava nos autos do processo. Não estamos fazendo um documentário sobre a Suzane ou sobre o assassinato, mas uma obra ficcional em cima de fatos biográficos”, esclarece o produtor Marcelo Braga. “Eles são réus confessos. O que tinham para falar já o fizeram no julgamento”, complementa Maurício.
Juntos, os dois filmes têm orçamento ousado de R$ 8 milhões. Embora habilitados a receber quase R$ 2 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual, a produção optou por abrir mão do recurso.
"Como alguém com tantas condições comete um crime?"
Em entrevista ao Estado criminóloga Ilana Casoy conta como foi participar do roteiro dos dois filmes.
Por que o Caso Von Richthofen ainda levanta tanta discussão?
As pessoas não conseguem lidar com tantos casos, são dores muito profundas. Há também uma identificação, visto que quase todos são pais e mães ou têm pai e mãe. A Suzane guarda uma semelhança com o que a sociedade acha belo e bom. Uma menina branca, loira, rica e cheia de clichês. Teoricamente, pelo que se acredita numa fantasia universal, é uma moça que não teria problemas e que vira uma assassina. Como alguém que teve tantas condições comete um crime, que não só ultrapassa o limite da lei como também o do sagrado ao matar pai e mãe? São questões que fazem todos se movimentarem para reprimir ou tentar entender melhor o assunto.
Há muitos fatos que a sociedade desconhece?
Sim. Até o júri, na época, foi limitado, com cerca de 250 pessoas, que ouviram os depoimentos. Mas e o resto do mundo? Pequenas sutilezas não são noticiadas. Este é um caso de família que gera muita revolta, dúvidas e que não dá para ser explicado.
Qual a importância de filmes com essa temática?
É importante causar reflexão nas pessoas. Estamos explorando uma camada mais profunda da história, que não é sobre a investigação ou a questão policial e sim as dinâmicas de relacionamento, como a do casal, que era absolutamente comum. Juntos, eles matam.
E separados? Como eles chegam a isso?
Ela era completamente apaixonada por ele, tem inúmeras cartas de amor no processo. Mas o que não é normal é a forma como acabou. E também as dinâmicas familiares. A história da Suzane e do Daniel nós já vimos na nossa família ou ao nosso redor, que é a velha questão da diferença social, econômica e cultural.
Mas o que será verdade?
Ou será tudo mentira? Não há uma resposta, ninguém estava lá.