Geral

Advogada teve uma vida breve e de luta pelas mulheres

Diomício Gomes
Letícia Garces, de 43 anos, morreu após uma pneumonia que contraiu

No mesmo dia em que foi destaque no DAQUI pela dissertação de mestrado que defendeu, Geografia da Violência Contra Mulheres: espacialização da violência contra mulheres no município de Goiás/GO - 2018 a 2023, a advogada Letícia Garces, 43 anos, diretora do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), da cidade de Goiás, buscou ajuda médica no Hospital São Pedro D’Alcântara em razão de um forte cansaço. Transferida para Goiânia, ela não resistiu a uma pneumonia na noite desta quarta-feira (3), deixando um legado de resistência e dedicação à luta contra a violência de gênero.

A advogada estava atravessando um momento de profundo esgotamento físico e mental em razão das várias atividades que acumulou nos últimos tempos. “Me afastei de todas as funções para cuidar de mim. Eu achei que iria conseguir fazer tudo, mas não consegui. De agora em diante vou reduzir o ritmo”, disse ela ao jornal na semana passada. No Ceam ela ocupava o cargo de diretora e assessora jurídica, também coordenava o Grupo Reflexivo para Autores de Violência e se dedicava aos estudos acadêmicos. Ela não teve tempo de reduzir o ritmo e nem de levar à frente o projeto de doutorado que estava desenhando.

Letícia Garces nasceu em Aparecida de Goiânia mas viveu 13 anos no campo, entre acampamento e o Assentamento Padre Felipe Ledet, no município de Goiás, depois de ter se aliado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Foi ainda no acampamento que conheceu o ex-companheiro que passou a agredi-la por não aceitar sua insistência em frequentar o curso superior de Direito. Após a segunda tentativa de feminicídio, ela saiu de casa e concluiu o curso no campus de Goiás pela Universidade Federal de Goiás pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), destinado a assistidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

A sua vivência como vítima de violência doméstica a fortaleceu. “Tudo o que estudei foi em razão dessa vivência. Cheguei à conclusão de que não deveria me calar e buscar toda a ajuda possível, principalmente para as mulheres do campo. Tenho um carinho especial por elas porque sei o que passam e continuam passando”, disse Letícia. A advogada passou a assessorar juridicamente o Ceam e em seguida assumiu a direção. Na condição de mulher intersexo trans, como se definia, se dedicou à causa LGBTQIA+.

Em sua dissertação de mestrado, a advogada analisou a espacialização da violência contra a mulher. Mais do que isso colocou o corpo da mulher como um lugar demarcado e violentado pela cultura machista e pelas relações hétero-patriarcal. Ela contou que no doutorado pretendia continuar tratando do tema, dentro de uma perspectiva de Direitos Humanos.

Ao ser diagnosticada com pneumonia, Letícia foi transferida para o Hospital de Doenças Tropicais Dr Anuar Auad (HDT), em Goiânia, onde sofreu duas paradas cardíacas. Seu corpo foi sepultado na tarde desta quinta-feira (4) no Cemitério Vale da Paz, em Goiânia. Ela deixou o marido Edson Dantas. 

Sem rede de proteção

A morte da advogada e ativista surpreendeu. O prefeito da cidade de Goiás, Aderson Gouvea, decretou luto oficial de três dias. “Perdemos uma pessoa bravia, que lutava muito”, comentou a vereadora Elenizia da Mata. Amiga e ex-vereadora, Iolanda de Aquino afirmou que Leticia Garces fará muita falta. Orientador da pesquisadora em sua dissertação de mestrado, o professor doutor Edson Batista da Silva agradeceu a pesquisadora, em sua rede social, “pelo privilégio de a ter conhecido e aprendido tanto com seus gestos, sua postura, dedicação, inteligência, solidariedade, disciplina e humanidade”.

Muito emocionado, Edson Batista da Silva lembrou que conheceu Letícia como uma mulher trabalhadora rural, que sofreu violência doméstica e teve de emigrar por estar em risco e não ter nenhum tipo de proteção no campo e não perdeu a capacidade de lutar. “Letícia, mulher camponesa, vítima de violência doméstica que acomete cotidianamente inúmeras mulheres, decidiu, como gostava de dizer, parafraseando Cora Coralina: ‘juntar todas as pedras que vieram sobre ela, levantar uma escada muito alta, subir e tecer um tapete floreado e se perder nos sonhos que tinha…"

A co-orientadora, professora doutora Lorena Francisco de Souza ressaltou que a perda é grandiosa para as mulheres. “Como co-orientadora tive contato com as reflexões teóricas e a Letícia pesquisadora, sempre muito dedicada e atenta aos seus objetivos e, com certeza, deixou uma pesquisa grandiosa que servirá de referência para as mulheres vilaboenses e goianas.”

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