GABRIELLA BRAGA
A cada dois dias, uma medida protetiva de urgência concedida à mulher vítima de violência doméstica é descumprida em Goiás. De janeiro a maio deste ano, foram 70 casos registrados. Já em todo o ano de 2022, foram cem ocorrências. Os dados são do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), que considera que o número alto tem ligação com o aumento no total de medidas deferidas.
Pela legislação, o descumprimento da medida protetiva é crime e pode ser punido com prisão, além de outras penalidades, como aplicação de multa, uso de tornozeleira eletrônica e a determinação de comparecimento a grupos reflexivos.
Mesmo com todas as possibilidades de pena, o descumprimento é algo presente na vida de muitas mulheres que passam por situações de violência doméstica ou familiar, seja por meio da tentativa de contato pelas redes sociais, ameaças, e até mesmo agressões físicas e o mais grave, o feminicídio.
O drama de tensão e insegurança é vivido por uma empresária e tradutora, de 39 anos, moradora de Goiânia, que preferiu não se identificar.
Ela relata que em 2021 iniciou um relacionamento com um homem, também empresário, e, um tempo depois, ficou grávida. Durante o processo, o então companheiro, que não aceitava a gestação, começou a fazer ameaças e, em um dia, a empurrou de uma escada. Com a queda, o granito se quebrou e ocasionou ferimentos no corpo da mulher. Naquele dia, a mulher percebeu que estava em uma relação violenta e optou por sair de Goiás para seguir com a gravidez.
Logo que o bebê completou dois meses, retornou ao estado. À época, entrou na Justiça com o processo de pensão alimentícia. “Depois da decisão (favorável) da pensão ele começou a mandar ameaças”, relata.
Mesmo com a decisão judicial, o homem se negou a arcar com as despesas. Ao retornar com as ameaças, além da mulher, começou a fazer ataques contra a criança. Conforme a empresária, a primeira medida protetiva de urgência foi solicitada em agosto do ano passado. Mas, mesmo depois, os ataques não cessaram.
Até o momento, ela conta que já precisou retornar cinco vezes à delegacia para fazer o registro dos descumprimentos. Conforme a medida protetiva, ele é proibido de se aproximar dela por 300 metros e de entrar em contato, seja de forma física ou por meio das redes sociais.
A empresária reclama que, mesmo com os descumprimentos e os boletins de ocorrência feitos, o homem não foi preso.
Em decisão judicial favorável, o acusado foi obrigado a utilizar tornozeleira eletrônica. Junto a isto, a mulher carrega consigo um botão do pânico. O dispositivo, combinado com a tornozeleira, permite saber caso ele se aproxime ou, até mesmo, chame por socorro imediato por meio do dispositivo.
A empresária conta que, desde que obteve a determinação pelo uso da ferramenta, em abril deste ano, foram duas notificações. Uma denunciando a proximidade entre ambos e, a outra, relatando que era necessário a troca da tornozeleira. “Ele não desistiu de me procurar, de me ameaçar”, desabafa.
Para a mulher, mesmo com todo o mecanismo, ainda há a sensação de insegurança e de impunidade. “Todo lugar a gente fica apreensiva porque não sabe se a pessoa vai chegar para atacar”, conta, e acrescenta que a necessidade constante de estar com o botão de pânico dá a impressão de ser “refém”. Por isso, não descarta sair do Brasil.
Legislação
A medida protetiva é um dos mecanismos criados pela Lei Maria da Penha (11.340/2006). A legislação surgiu no intuito de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, podendo ser ela em cinco tipos: física, psicológica, moral, sexual, ou patrimonial.
Em 2018, o descumprimento de medida protetiva de urgência foi tipificado como crime na Lei Maria da Penha, passível de ser punido com até dois anos de detenção. Titular da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ-GO, a juíza Marianna de Queiroz destaca que a penalidade é analisada individualmente a depender da gravidade do caso e da forma de desrespeito à medida.
Inicialmente, em determinados casos, o Judiciário pode fazer apenas uma advertência. Em outras situações, há a fixação de multa por ato de descumprimento, determinação de uso de monitoramento eletrônico e botão de pânico ou, naqueles mais graves, pode ficar preso. Se houver reincidência, a possibilidade de prisão é ainda mais provável.
Para a juíza, o número alto de descumprimentos está relacionado ao aumento geral de medidas protetivas de urgência deferidas pela Justiça.
O TJ-GO é o quinto tribunal brasileiro com o maior quantitativo de medidas protetivas concedidas. Neste ano, até o momento, o Judiciário goiano concedeu 7.998 destas. Em 2022, foram 16.207 ao todo, sendo que, no ano anterior, o total foi de 12.426. Desta forma, entre 2021 e 2022, houve um aumento de 30,4%.
A magistrada explica que o crescimento tem a ver com o fortalecimento dos canais de denúncia e a “maior conscientização social sobre o que é a violência doméstica” e seus tipos.
“Nos últimos anos, a tendência é de aumento de medidas protetivas solicitadas, isso nacionalmente. Quanto mais consciente as mulheres ficam dos seus direitos e das violências que sofrem, mais elas procuram as autoridades para buscar ajuda e denunciar (o caso)”, destaca Marianna.
Além disso, aponta que a tipificação como crime do descumprimento em si também tem tido efeito nos números. Isso porque, antes da Lei 13.641/2018, que modificou a Lei Maria da Penha, o entendimento se era crime ou não ficava nas mãos do magistrado responsável pelo processo. “Colocou o artigo (24-A) para deixar bem claro (que é crime).”
Desrespeito deve ser registrado
Coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de Goiás (Nudem/DPE-GO), Tatiana Bronzato aponta que, nos casos de desrespeito à medida protetiva, há relatos de novas ameaças e agressões, além de outras formas de tentativa de contato.
Independente da situação, pontua que, quando houver desrespeito às limitações impostas pela medida, a mulher deve notificar às autoridades. “Se não informa não tem como o sistema de justiça saber”. Dentre os principais limites, o mais comum é o afastamento do agressor de 300 a 500 metros da vítima e a proibição de manter contato.
A denunciante, no entanto, pode solicitar outras medidas previstas. “Que ele se afaste do lar, proibição de ir a determinado espaço (trabalho, igreja)”, exemplifica Tatiana. As limitações podem ser solicitadas pela própria mulher quando ela assinar um formulário de avaliação de risco, ainda durante a ocorrência do caso, seja em delegacias, promotorias ou defensorias.
A quantidade e gravidade do descumprimento deve ser anexada no processo judicial por um novo boletim de ocorrência. Conforme Tatiana, o formulário, junto com a quantidade e gravidade do descumprimento, devem ser levados em conta para determinar uma punição mais rigorosa ao agressor. “Sempre acaba passando por análise no grau de descumprimento.”
A promotora Emeliana Rezende de Souza, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO), considera que a medida protetiva não é resolutiva da violência doméstica, mas um mecanismo emergencial. “Elas não podem durar para sempre. Tem de ter o processo, a responsabilidade penal, e tem de tratar o agressor. (A violência contra a mulher) é um problema social e precisa ser tratado de forma social”, destaca.
Revogação de limitações representa 50% do total
A proporção de revogação de medidas protetivas em 2023 é semelhante à de 2022 em Goiás. De janeiro a maio de 2023, foram 3.939 revogações dentre as 7.998 concedidas, o que representa 49,2%. Em 2022, foram 16.207 medidas deferidas e 3.939 revogadas, ou 48,9%.
Por outro lado, em 2021, o porcentual registrado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) foi bem menor. No ano, o Judiciário concedeu 12.426 e, conforme os dados encaminhados ao POPULAR, revogou 3.326, equivalente a 26,7%. Ou seja, quase a metade do apontado para o ano seguinte.
Mesmo assim, o número é considerado alto. Para Carla Monteiro, presidente do Centro de Valorização da Mulher em Goiás (Cevam). As revogações sempre tiveram um quantitativo bem representativo, mas o aumento tem sido motivado pela maior facilidade de notificação das ocorrências. “Só colocou lupa na situação”, diz.
Das 6.009 mulheres abrigadas pelo Cevam em 2022, só 19% sabiam que viviam em situação de violência. Dotal, 42% voltam a viver no espaço de agressão. “Chegava com olho roxo, o companheiro era preso, e ela ainda achava que era uma briguinha.”
Carla aponta para um “ciclo vicioso” no qual, muitas vezes, a mulher tem relação de dependência financeira e emocional do parceiro. “Não é que seja consciente, mas a mulher se submete porque acha que é o único ambiente que existe.”
Ela pontua ainda que violência não se resume à agressão física. “A agressão psicológica é o maior índice de violência contra a mulher. Sem querer, na nossa sociedade, existe um alinhamento de desrespeito à igualdade (de gênero)”, destaca, acrescentando que o enfrentamento à violência perpassa o empoderamento e a autonomia da mulher.
“Não existe isso de mulher vítima, existe sobrevivente. E não existe sobrevivente silenciosa. Sobrevive pela denúncia, pela fala, pela voz. Porque a voz dela, a opinião, os projetos, por anos foram sequestradas seja pelo núcleo familiar, seja pela sociedade”, finaliza.
Conforme a juíza Marianna de Queiroz, da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), a medida protetiva de urgência, por si só, é provisória. “A medida protetiva cerceia a liberdade de uma pessoa. Não pode ser para sempre. O normal é passar um tempo e deixar de existir, ficar em vigência até quando for necessária”, explica.
É comum que, no deferimento da medida, o próprio magistrado determine um tempo de vigência. “(Ao longo do processo) se intima a vítima para ver se é necessária a renovação da medida. Às vezes passa um tempo e ela não acha mais necessário, ou volta ao relacionamento. A medida vale até quando não for mais necessária, conforme a narrativa da vítima, ou por ter passado o tempo.”
Coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de Goiás (Nudem/DPE-GO), Tatiana Bronzato aponta que grande parte dos atendimentos feitos às mulheres é para revogação de medida protetiva. De setembro de 2022 a fevereiro de 2023, a defensoria atendeu 230 pedidos de revogação.
Dentre as principais motivações, está a reconciliação do casal, seja por dependência financeira ou emocional, ou por conta do cuidado e da convivência com os filhos.
Há, ainda, casos em que a mulher não quer ser responsável pela prisão ou aplicação de outras condenações penais ao acusado, outros em que o acusado possui problemas de saúde ou dependência de álcool ou drogas e a vítima sente-se mal pelo afastamento e, ainda, casos de coação ou solicitação por parte da família ou mesmo do agressor.
Botão é ferramenta importante nos casos
Goiás conta atualmente com 356 botões de pânico ativos. O dispositivo é um dos mecanismos cedidos às mulheres em casos mais graves e, consequentemente, com maior potencial de risco de feminicídio. O uso é determinado pelo juiz do caso, junto com o uso da tornozeleira eletrônica por parte do agressor: 276 são monitorados.
Os aparelhos são da Diretoria-Geral de Administração Penitenciária (DGAP) e são monitorados em uma central para garantir que o denunciado não se aproxime da mulher. Caso infrinja a metragem imposta, o botão de pânico vibra e a vítima é notificada. Ela também pode acioná-lo a qualquer momento, notificando uma viatura.
A discrepância entre o número de botões e de tornozeleiras ativas ocorre porque alguns acusados possuem mais de uma vítima e, também, porque algumas mulheres optam por permanecer com o equipamento mesmo após o fim do monitoramento eletrônico do agressor, como explica a DGAP.
A estudante de direito Isabella Lacerda, de 21 anos, é uma das vítimas de violência doméstica que utilizam o equipamento. No dia 9 de dezembro do ano passado, a jovem foi agredida pelo então namorado Thiago Brandão Abreu, de 40 anos. Ele foi preso em flagrante e teve a prisão convertida em preventiva.
No dia 11 de maio, ele foi solto após decisão da juíza Sandra Regina Teixeira Campos, do 3º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Goiânia. A magistrada ordenou o uso de tornozeleira ao mesmo e do botão de pânico pela vítima.
Isabella conta que, desde a soltura, a sensação de impunidade, medo e insegurança são diários. “Sempre estou com ele (botão), em todos os momentos, não deixo de forma alguma ele longe de mim, porque se vibrar e não estiver ao meu alcance eu não vou saber”, relata.
Em um dia, a estudante sentiu o aparelho vibrar e acreditou ser devido à aproximação do agressor. Após acionar o botão, uma equipe do Batalhão Maria da Penha entrou em contato. Mesmo sendo uma notificação sobre a carga da bateria que estava acabando, uma viatura foi até a residência dela para certificar-se da situação.
A comandante do Batalhão Maria da Penha, major Marineia Bittencourt, explica que a equipe faz o acompanhamento das mulheres que possuem medida protetiva de urgência ativa para fiscalizar o cumprimento, seja por meio de visitas periódicas ou ligações às assistidas. “Normalmente, o agressor sabe que a polícia está indo ali e isso já inibe ele de cometer novas agressões ou até mesmo o feminicídio”, explica.
Hoje, o número de assistidas supera os 3,5 mil. Conforme a comandante, nenhuma mulher atendida pela equipe foi vítima de feminicídio desde a criação da Patrulha Maria da Penha, em 2015, que passou a ser um batalhão em 2020.
O Poder Judiciário pode determinar que o agressor participe de grupos reflexivos ou, ainda, oferecer casa abrigo e de acolhimento para a vítima.
Neste ano, até o momento, foram 177 determinações judiciais para inclusão de agressores aos grupos reflexivos, sendo que 138 foram inseridos.
Os dados mais recentes levantados pela Seds, referentes a 2019 a 2020, mostram que a taxa de reincidência no período foi de 2 a 5%. Os agressores participam de sessões de debate sobre a violência intrafamiliar e de gênero varia entre 95% a 98%.
Presidente do Centro de Valorização da Mulher de Goiás (Cevam), Carla Monteiro aponta que o Judiciário goiano foi o primeiro a trabalhar com grupos reflexivos, ainda em 2001.