O Ministério da Saúde decidiu aumentar o intervalo entre as doses da vacina contra Covid-19 para crianças. A bula do imunizante da Pfizer-BioNTech prevê uma diferença de três semanas entre as duas aplicações. O governo federal informou, em entrevista coletiva, na quarta-feira (5), que adotará intervalo de oito semanas.
A decisão foi criticada por infectologistas e também educadores ouvidos pelo UOL, por não considerar o cenário atual da pandemia de coronavírus, que sugere uma nova onda de infecções a um mês do retorno às aulas presenciais.
À imprensa, o Ministério da Saúde elencou duas motivações para o maior espaçamento entre as doses: uma maior eficácia na produção de anticorpos neutralizantes e a redução de riscos de efeitos adversos --em especial, a miocardite (inflamação do músculo cardíaco).
Ao defender a medida, citou outros países que adotam regimes semelhantes, como Reino Unido, Canadá e Portugal.
Sem apontar quais seriam as pesquisas científicas que subsidiam a decisão, Rosana Leite de Melo, secretária de Enfrentamento à Covid-19 do ministério, afirmou que "os trabalhos mostram que, se ampliarmos esse espaço de tempo, se for maior que 21 dias, dá uma maior proteção para não se ter esse efeito adverso [miocardite]".
O UOL questionou a pasta sobre quais seriam esses trabalhos, mas não teve retorno até a conclusão da reportagem.
A insistência do governo federal em vincular a vacinação contra Covid-19 em crianças a riscos de efeitos adversos é uma das principais críticas de especialistas às declarações e à gestão do ministério. Marcelo Otsuka, vice-presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo, aponta números que refutam o "excesso de zelo" do ministério.
Segundo o pediatra e infectologista, das sete milhões de doses aplicadas nos Estados Unidos em crianças abaixo de 11 anos (sendo dois milhões de segunda dose), foram registrados apenas oito casos de miocardite. "Em todos esses casos, a evolução foi ótima, sem complicações ou necessidade de internação", aponta.
Os EUA adotam o regime de 21 dias entre doses.
Otsuka argumenta ainda que, se a preocupação do Ministério da Saúde fosse proteger contra inflamações cardíacas, a vacinação infantil deveria ser estimulada.
"A Covid-19 gera o risco de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica, que acomete crianças e adolescentes que tiveram infecção prévia pelo vírus. E, na quase totalidade dos casos, há miocardite", diz Otsuka.
De acordo com Otsuka, no Brasil foram notificados cerca de 1.200 casos e mais de 80 mortes em consequência da síndrome, desde o início da pandemia.
Com relação à justificativa de que o intervalo maior entre doses aumentaria a eficácia do imunizante, especialistas disseram à reportagem que esse ganho, que foi observado na população adolescente e adulta, pode se repetir entre as crianças. No entanto, este não seria o momento de estender o prazo entre as aplicações.
"Dados iniciais do Canadá [em pré-print, ou seja, ainda não avaliados para publicação oficial], mostram que aumentar o intervalo entre as doses nas crianças melhora a resposta imune. No entanto, essa medida só seria aceitável numa situação de controle da pandemia, o que não é o caso no momento", afirma Raquel Stucchi, infectologista da Unicamp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Stucchi, da Unicamp (Universidade de Campinas), acredita que a decisão do Ministério da Saúde só se justifica por uma falta de planejamento da pasta para compra de doses suficientes para vacinar as crianças em tempo hábil —o mais rápido possível.
"Nós temos pressa de imunizar esse público. Os nossos números não estão sob controle e nós temos o retorno da atividade presencial escolar, momento que seria muito importante que as crianças estivessem vacinadas. Não só para protegê-las, mas também pais e avós", diz a infectologista.
A volta às aulas em um contexto de crescimento de casos vem preocupando educadores. Com o prazo estipulado pelo Ministério da Saúde, crianças dos primeiros anos do ensino fundamental estarão com o regime vacinal completo apenas na terceira semana de março —isso em cidades mais ágeis na vacinação.
Com a recente alta de casos de covid-19, o temor é que, novamente, as crianças sejam prejudicadas e iniciem o ano letivo sem atividades presenciais.
"Se nós não começarmos 2022 com a vacinação resolvida, teremos mais um ano com problemas pela frente", aponta Angela Ramos, mestre em Educação na UniRio e professora do ensino fundamental da rede municipal do Rio de Janeiro.
"Na rede municipal, nós terminamos 2022 com as crianças no presencial, mas não foi tranquilo. Tivemos turmas suspensas por causa de covid-19 e escolas fechadas para higienização. Isso num momento em que tínhamos poucos casos. O cenário agora é outro", afirma Ramos.
O QUE DIZEM PFIZER E ANVISA
Consultada pelo UOL sobre o aumento do prazo entre as doses da vacina pediátrica, a Pfizer afirmou em nota que "a segurança e eficácia da vacina não foram avaliadas pela empresa em esquemas de dosagem diferentes, uma vez que a maioria dos participantes dos estudos clínicos recebeu a segunda dose dentro da janela especificada no desenho do estudo [21 dias]."
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que aprovou o imunizante, diz que o intervalo definido em bula foi o avaliado pela agência com base nos estudos clínicos da fabricante. E que "alterações nesse intervalo podem ser adotadas pelo PNI (Plano Nacional de Imunização), mas esta decisão deve estar baseada em estudos científicos que demonstrem manutenção da eficácia e segurança da vacina com este intervalo".