É, na grande maioria das vezes, com um carrinho de tração humana que todos os dias muitos homens e mulheres circulam pelas ruas das cidades em busca da sobrevivência. Às vezes invisíveis, em outras vistos como estorvo, os catadores de recicláveis são fundamentais na cadeia da reciclagem. Eles contribuem para movimentar um setor crescente da economia, reduzir gastos públicos com limpeza urbana e proporcionar a redução de impactos ambientais.
Negro, alguns fios de cabelos brancos, mãos calejadas, comunicativo e bem-humorado. Este é José Alves do Nascimento, um baiano de Irecê, de 49 anos, cerca de 15 deles vividos em Goiás. Ele é parte deste grupo de trabalhadores. O homem deixa a casa cedida onde vive, no Parque Amazônia, em Goiânia, todos os dias cedo para coletar “de tudo” e revender em um depósito de reciclagem. A esposa dele, Dinalva Alves dos Santos, o acompanha na labuta. Juntos, tiram em um dia bom no máximo cem reais.
Ao cair da noite, “em um dia bom” de coleta, o carrinho chega a até 300 kg. A carga é formada por papelão, alumínio, plástico e metais em geral. O material é revendido em um depósito situado no Jardim Maria Inês em Aparecida de Goiânia.
Chão batido, dezenas de sacos de materiais recicláveis, som de objetos para lá e para cá, enquanto pés cruzam a área de trabalho na companhia de sossegados vira-latas. É neste cenário que Nascimento revende os materiais após a pesagem.
O catador afirma que já trabalhou em obras e chácaras. “De tudo eu mexo um pouquinho, só não roubo. Eu nunca peguei avião, mas se me der, eu levanto ele do chão, agora descer é que eu não vou saber”, brinca.
A baixa escolaridade, é, na visão dele, o motivo de não conseguir uma ocupação mais rentável financeiramente. A formação educacional modesta não o impede de entender o valor do próprio trabalho. “Nós estamos ajudando a limpar a cidade, estamos ajudando a prefeitura. Acho que todos carrinheiro era (sic) para ter um salário (pago) pelo governo. A gente está limpando o meio ambiente.”
Além da economia aos cofres públicos, em função do apoio à limpeza urbana, os catadores contribuem para reduzir impactos ao meio ambiente. Quando um material é reciclado, energia e água são economizados. Aquele papelão coletado por Nascimento significa que haverá economia de água, menor uso de energia e árvores serão poupadas (veja quadro).
Os braços de Nascimento e da esposa também movem a economia. O depósito que recebe os materiais, revende e assim este setor da economia gira.
Dono do depósito em Aparecida de Goiânia, Leilson Martins Queiroz, o Léo, como se apresenta, de 37 anos, paga 25 centavos aos catadores e recebe 32 centavos no repasse. Os preços dos recicláveis estão em baixa. “Eles só mandam a foto. Eles (compradores) abaixam e só mandam a foto aqui. Não dão justificativa”, diz ele ao mostrar as mensagens na tela do celular e completar que a remuneração é modesta: “dá só para viver mesmo”.
O local é alugado, não tem documentação e também não conta com apoio do poder público.
A queda nos preços dos recicláveis é confirmada pelo presidente da Cooperativa de Reciclagem Seleta, Nivaldo Rodrigues. “Há um ano, recebíamos 1 real e 50 centavos pelo quilo do papelão. Agora são 25 centavos, 30 centavos. Se o governo federal não fizer nada, a categoria vai ser massacrada, passar necessidade”, resume.
O presidente da cooperativa tem ciência de que o serviço de separação dos materiais entregues pela Prefeitura de Goiânia deveria ser remunerado.
As cooperativas são acompanhadas pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) desde 2011. Promotor da 15ª Promotoria do órgão, Juliano de Barros Araújo, explica que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei 12.305/2010, estabelece que o serviço de triagem é uma política pública.
“O serviço é do município. Se ele usa cooperativa, está sob pena de enriquecimento ilícito. Com base nesta fundamentação jurídica (...), estamos cobrando agora mais fortemente para que os municípios façam a remuneração”. Ele diz que Brasília, Curitiba, Londrina e outras localidades já realizam este pagamento.
O promotor informou ainda que, no caso de Goiânia, a administração municipal já se comprometeu, durante uma reunião, a apresentar uma proposta de remuneração.
O Daqui solicitou uma resposta, nesta sexta-feira (23), sobre esta proposta, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.
Programas
A situação pode mudar. Nos últimos meses foram publicadas legislações que visam a promover o reconhecimento financeiro dos catadores.
Em fevereiro deste ano, o governo federal editou o Decreto Nº 11.413. O texto instituiu o Certificado de Crédito de Reciclagem de Logística Reversa, o Certificado de Estruturação e Reciclagem em Geral e o Certificado de Massa Futura.
Estes certificados, desde que comprovada a origem, por parte dos trabalhadores envolvidos na coleta de recicláveis, poderão ser comercializados. Empresas que têm obrigações para com a logística reversa poderão fazer a aquisição dos mesmos em cumprimento e prestação de contas de obrigações legais.
O Governo de Goiás também elaborou um decreto que beneficia trabalhadores da reciclagem (Nº 10.255/23). Para este público, a principal medida é a possibilidade da emissão do Certificado de Crédito de Reciclagem.
Como as empresas de Goiás são agora obrigadas e promover a reciclagem de ao menos 22% das próprias embalagens, elas poderão comprovar a obrigação com a compra dos certificados emitidos por cooperativas de reciclagem de materiais.
Nascimento e Queiroz não sabiam das políticas públicas. Já Rodrigues afirmou ter algumas informações a respeito.
Programa incentiva criar cooperativas
A edição do decreto pelo Governo de Goiás que criou o selo de reciclagem veio acompanhada de um programa de incentivo às cooperativas.
O texto da norma estadual qualifica para integrar o processo de logística reversa: empresa aderente - aquela que utilize embalagens, entidade gestora - responsável por organizar a logística reversa, entidade representativa - representante dos fabricantes, empresa recicladora e operador - pessoa ou empresa que faça a restituição de materiais para a reciclagem.
A meta estadual é contribuir para a criação de 50 a 60 cooperativas de reciclagem em 12 meses. Segundo os dados do Atlas Brasileiro da Reciclagem, em 2021 havia 29 delas em Goiás. A Secretaria de Estado da Retomada (SER), responsável por fomentar as instituições, contabiliza 33, com 650 trabalhadores.
O número de catadores de recicláveis é bem maior conforme estimativa da SER: 7 mil. Parte deles atua em lixões e também são objeto do programa.
A pasta vai trabalhar com R$ 1,8 milhão para investir em cooperativas e consultorias a municípios e R$ 4,5 milhões em crédito social para equipamentos, este recursos destinado às instituições e trabalhadores.
Titular da SER, César Augusto de Sotkeviciene explicou que o trabalho já chegou a Acreúna, Anicuns, Goianira, Itapuranga, Mozarlândia, Pires do Rio, Quirinópolis, São Miguel do Araguaia, Silvânia, Vianópolis, Corumbá e Goiás.
O trabalho consiste na mobilização de prefeituras profissionais dispostos a integrar o programa. Os trabalhadores são capacitados, recebem consultoria para abertura de CNPJ, desconto na emissão do documento e apoio do Sebrae.
“Após a instalação das cooperativas, nós vamos trabalhar no segundo passo. Queremos estruturar cinco grandes arranjos produtivos locais (APLs), que possam receber materiais e produzir alguma coisa, além de realizar a reciclagem”, planeja Sotkeviciene.
Fiscalização
Além do apoio social, o programa, no entendimento do Governo de Goiás, é ferramenta para a transição dos lixões para aterros sanitários.
Conforme a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), há 19 aterros sanitários licenciados. No entanto, cerca de 50 municípios fazem a disposição final adequada de resíduos sólidos. Ele utilizam as estruturas vizinhas para isto. Ainda assim, o número representa apenas uma em cada cinco cidades.
Dinâmica
A adesão das empresas ao programa é obrigatória. Elas devem apresentar um Plano de Logística Reversa e Relatório de Desempenho Anual, ambos autodeclaratórios. Conforme a Semad, um sistema informatizado vai receber as informações. O cumprimento das metas será fiscalizado pelo Comitê de Logística Reversa. “O verificador de resultados também faz a auditoria das informações e das notas fiscais, garantindo a veracidade das informações e não colidência das notas fiscais.”
O descumprimento da determinação legal pode resultar em multa de R$ 5 mil a R$ 50 milhões, dependendo da gravidade de cada situação.
Goiás reciclou 15.400 toneladas em 2020 e 2021
Em 2020 e 2021, Goiás reciclou, conforme o Atlas Brasileiro da Reciclagem, 15.401 toneladas. A maior parte do material foi papel: 9.739 toneladas. Na sequência aparecem: plástico (2.881), vidro 1.928 e metal.
O papel dos coletores de rua e cooperativas é de fundamental importância para se chegar a este volume. Só o depósito do Jardim Maria Inês (leia mais na página 14) soma até 5 toneladas por mês. Lá, conforme o proprietário, a papel é o material de maior volume. No entanto, sucata representa o maior montante em toneladas.
Em Goiânia, o Programa de Coleta Seletiva tem há anos em torno de 5%, 6% de toda a coleta para a reciclagem. Em 2022, por exemplo, a coleta domiciliar, que inclui os resíduos orgânicos, recolheu 33.713 toneladas. Já a coleta seletiva só chegou a 2.127 toneladas. A meta era que a coleta seletiva já chegasse a pelo menos 30%.
Para piorar a situação, nem todo o material que é enviado às cooperativas integrantes do programa da capital podem ser aproveitados. Às vezes estão contaminados por resíduos orgânicos.