A severidade da crise hidrológica provocada pela seca na Região Norte acende o alerta para o que pode ocorrer na bacia do Tocantins-Araguaia. O fenômeno El Niño, segundo analistas da área, deve atingir o ápice em dezembro, reduzindo os índices pluviométricos no Centro-Oeste e mantendo um maior volume de chuvas no Sul. Na última quinzena de dezembro, dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), com base em medições da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), mostraram que a situação do Rio Araguaia é preocupante.
André Amorim, gerente do Centro de Informações Meteorológicas e Hidrológicas de Goiás (Cimehgo), da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), reconhece que o monitoramento do Rio Araguaia feito pela pasta mostra que “ele está baixo, mas não muito distante dos outros anos, já que as chuvas não começaram efetivamente”. A vazão do Araguaia, considerado um rio federal, é medida pela ANA que esta semana está enfrentando problemas com os computadores que fazem medições.
Uma previsão em conjunto realizada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pela Fundação Cearense de Meteorologia (Fuceme) e pelo Instituto Nacional de Meteorologia, que é ligado ao Ministério da Agricultura, revela uma situação polarizada no Brasil no último trimestre do ano: o Norte com redução de até 200 mm de chuvas, principalmente nos estados do Pará e Amazonas, enquanto no Sul, mais no Rio Grande do Sul, o aumento da precipitação vai ficar na faixa de 50 a 100 mm entre outubro e dezembro. Em Goiás, no mesmo período, a redução de chuva prevista no documento é de 50 mm, comparado à média histórica.
Chefe da Divisão de Modelagem Numérica do Sistema Terrestre do Inpe e colaborador do Centro de Excelência em Estudos, Monitoramento e Previsões Ambientais (Cempa Cerrado), que está ancorado na Universidade Federal de Goiás (UFG), o físico Saulo Ribeiro de Freitas disse que o El Niño, somado aos efeitos do aquecimento global, vai provocar um verão mais quente e mais seco do que o normal nas regiões Norte e Centro-Oeste do País. O Sul, entretanto, vai continuar enfrentando chuvas torrenciais.
A bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia, a maior do País, localizada totalmente no território nacional, abrange os estados do Tocantins, Pará, Maranhão, Goiás, Mato Grosso e o território do Distrito Federal. Suas águas são de grande relevância para a geração de energia elétrica, navegação, abastecimento da população e em atividades econômicas, como a agropecuária. Se for confirmado um regime menor de chuvas até dezembro, esses setores serão impactados.
Saulo Freitas explica que as três instituições observaram que o fenômeno El Niño - o aquecimento do oceano Pacífico ao longo da latitude do Equador - ainda não estacionou. “Isso preocupa porque indica uma persistência de baixa precipitação e aquecimento mais ao Norte do País, incluindo a região Centro-Oeste, que muito provavelmente pode chegar até a virada do ano”.
O estudo mostra que pelo menos até dezembro, nos estados dessas regiões, como Goiás, as temperaturas vão ficar de 2 a 3 graus acima do que é esperado, ou seja, da média histórica.
“Ondas de calor, concentradas em uma, duas semanas, devem persistir, não somente por causa do El Niño, mas também pelo aquecimento do planeta. Pela nossa experiência, as anomalias identificadas indicam menos chuva até o final do ano no Norte e Centro do Brasil o que certamente pode levar a uma questão mais severa das condições das bacias hidrográficas”, detalha Saulo Freitas.
Estudos mostram redução de vazão e de chuvas
Em maio de 2022, Luciano B. Lima e Dilermando Pereira Lima Júnior, do Laboratório de Ecologia e Conservação de Ecossistemas Aquáticos, da Universidade Federal de Mato Grosso, com a parceria de Francisco Cribari Neto, do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Pernambuco, publicaram um estudo mostrando que as vazões dos rios Araguaia e Tocantins estão diminuindo gradativamente.
Os pesquisadores observaram os registros históricos de 27 estações de medição até o ano de 2019 e constataram vazões abaixo da média em 19 delas, em especial nos períodos de estiagem.
Segundo os pesquisadores, investigações já realizadas indicam que as alterações no uso do solo e climáticas - principalmente através do aumento do déficit de pressão de vapor - já impactaram o bioma Cerrado. E esses fatores podem estar contribuindo para a redução da vazão dos rios, um movimento que irá influenciar outras bacias hidrográficas repercutindo no uso na irrigação e produção de energia, por exemplo.
Outro estudo, publicado na revista científica Nature, capitaneado por Gabriel Selbach Hofmann, pesquisador do Laboratório de Geoprocessamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analisa a frequência de chuvas no Cerrado entre 1960 e 2021 em quatro períodos do ano.
Os resultados apontam uma redução significativa, de até 50%, na precipitação total e no número de dias chuvosos. Os resultados do estudo sugerem uma expansão e intensificação da estação seca na região, podendo trazer sérios impactos ambientais e sociais.
Os pesquisadores encontraram alterações significativas na evapotranspiração, na umidade do ar e na circulação atmosférica que ajudam a compreender a redução das chuvas no Cerrado em cada período do ano, mas também as amplas mudanças que têm transferido a umidade de regiões tropicais para o sul do país. “Com a redução das chuvas, há uma tendência ao déficit hídrico na maior parte do Cerrado, o que resultará em impactos e desafios para o futuro da região”, afirma Gabriel Hofmann.