O desembargador Silvânio de Alvarenga, do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), insinuou durante julgamento que a jovem que denunciou o pastor Davi Passamani, fundador da igreja A Casa, poderia ser “muito sonsa”. Ele também alegou que há uma espécie de “caça aos homens” e questionou sobre a possibilidade um relacionamento entre um homem e uma mulher sem ter antes um “ataque”, colocando a palavra entre aspas. (Veja o vídeo acima)
A fala de Silvânio ocorreu na última terça-feira (19), durante uma sessão de análise da ação de reparação de danos movida pela jovem. Ao comentar a fala do desembargador Jeronymo Villas Boas, ele questionou: “O desembargador [Jeronymo] poderia me explicar. Essa moça ai, ela mesmo disse que é sonsa, ela mesmo usou essa expressão, que as vezes não está compreendendo a coisa. Será que ela não foi muito sonsa nesse caso?"
Alvarenga também sugeriu aos magistrados que pudesse analisar o caso partir da bíblia já que, segundo o depoimento do pastor, após o assédio sexual, houve uma reunião e um pedido de perdão ao casal, que foi aceito. Em outro momento, Silvânio considerou que, pelo namorado da vítima cursar direito, eles poderiam ter planejado a ação penal.
Na mesma sessão, o desembargador Jeová Sardinha disse que denúncias de assédio sexual e racismo se tornaram "modismo" nos tempos atuais. Alegou que é cético enquanto a esse tipo de situação, considerando ser “muito subversiva” a interpretação.
"Tenho uma preocupação muito séria com o tal do assédio moral, como gênero sexual, como espécie do gênero; e racismo. Esses dois temas viraram modismos. Não é à toa, não é brincadeira que estão sendo usados e explorados com muita frequência”, declarou Sardinha.
Votos
Apesar de se posicionar contrário ao pedido da jovem, Alvarenga indicou que poderá mudar de novo na próxima sessão. O voto dele poderá decidir o andamento do processo, já que o placar terminou empatado em dois votos favoráveis e 2 contrários.
Após as considerações dos desembargadores, a presidente da sessão, Sandra Teodoro, afirmou que a maioria dos casos estupros que ocorrem até em ambientes familiares começam com assédio moral, citando até religioso João de Deus, acusado de estuprar mulheres.
A advogada da vítima, Taísa Steter, afirmou que as falas dos desembargadores levaram a entender que a jovem teria contribuído para o assédio e que “desqualificar a vítima e enaltecer as falas do violentador é uma prática do senso comum”, que não pode ser praticado por juízes. (Veja a nota completa no final da matéria)
"O voto de deferimento do pedido do Des. Silvanio demonstra que numa análise equivocada e desassociada das provas do processo tanto a juíza de primeiro grau quanto a relatora do processo erraram. Portanto, seu voto corrigiu tal erro e se fez, finalmente, justiça à vítima”, acrescentou
A presidente da presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás (OAB-GO), Fabíola Ariadne, afirmou em nota que muita mulheres deixam de procurar a justiça justamente por medo de serem revitimizadas. Além disso, citou que para casos de assédio, há protocolos para evitar preconceitos e estereótipos.
"Os julgadores têm que se atentar ao que preconiza o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que é de observância obrigatória em todos os tribunais, desde março de 2023. Esse protocolo traz uma série de orientações para evitar a reprodução de preconceitos e estereótipos no Judiciário, inclusive nos casos de assédio."
A reportagem não conseguiu localizar o defesa do pastor Davi Passamani até a última atualização desta matéria.
Respostas
Em nota, Silvânio de Alvarenga alegou que fez questionamentos na intenção de compreender melhor a situação do caso.
"No contexto do julgamento complexo em andamento, que atualmente está sob minha análise após ter pedido vista dos autos na sessão relatada, esclareço que fiz questionamentos na busca do amadurecimento e da compreensão integral do caso em questão. Minha abordagem, ao levantar hipóteses e situações hipotéticas, tem como objetivo explorar a verdade real do processo, garantindo que nenhum aspecto seja negligenciado de ambos os lados."
Já Jeová Sardinha afirmou em nota que reconhece a “prevalência do machismo e do racismo em nossa sociedade” e alegou ter usado palavras no calor de voto verbal que “não dizem respeito ao caso concreto”.
"Antes de tudo quero falar que reconheço a seriedade e a prevalência do machismo e do racismo em nossa sociedade. Minha intenção, naquele contexto, ao abordar temas delicados como assédio e racismo, foi enfatizar a importância de uma análise cuidadosa e contextual de cada caso, para evitar julgamentos precipitados e erros. Entendo que a escolha de minhas palavras ditas no calor de voto verbal, até com erros de vernáculo, não dizem respeito ao caso concreto."
Denúncias de assédio
Em março de 2020, uma jovem de 20 anos usou as redes sociais para denunciar Passamani por importunação sexual. Um mês depois, a Justiça arquivou o processo por “ausência de justa causa”. O processo corre em segredo de Justiça.
No dia 20 de dezembro do ano passado, outra vítima registrou um boletim de ocorrência relatando que o líder religioso enviou mensagens com teor sexual, descreveu fantasias eróticas e ainda fez uma chamada de vídeo mostrando o órgão sexual. Esse é o segundo caso registrado contra o pastor, que segue sendo investigado pela Polícia Civil.
A jovem contou à polícia que havia procurado Davi anteriormente para um aconselhamento, após passar por uma crise em seu namoro. Segunda ela, a conversa em questão teria começado quando o pastor perguntou sobre o namoro dela. Ela agradeceu as orações e disse que tinha terminado o relacionamento. A partir desse momento, a conversa teria evoluído para investidas sexuais por parte do líder religioso.
Devido o segundo caso, o pastor renunciou ao cargo de liderança da Igreja Casa, em Goiânia, alegando que a decisão foi motivada para cuidar da saúde e da família, e que a decisão é em "caráter definitivo, irretratável e irrevogável".
Veja a nota completa da advogada da vítima Taísa Steter
O julgamento de casos que envolvem a dignidade sexual precisa ser feito a partir dos fatos e provas que fazem parte do processo
Infelizmente, nesse caso, tivemos até aqui, um verdadeiro julgamento moral, onde colocaram a vítima na posição de ter contribuído para a ocorrência da violência. Isso é absurdo.
A discriminação de mulheres é incompatível com os princípios constitucionais e tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário.
Desqualificar a vítima e enaltecer as falas do violentador é uma prática do senso comum. Contudo, os desembargadores não fazem parte do senso comum. Pelo contrário. Eles têm o dever de serem imparciais e julgarem o caso conforme as provas do processo, afastando vieses ceticistas ou crenças demasiadas.
As falas dos desembargadores expõe a sistemática do machismo estrutural ao qual estamos sujeitas.
Escancara a realidade de um país que registra um caso de estupro a cada 8 minutos.
Demonstra o quanto nós mulheres estamos sujeitas a uma sequências de violências.
Somos violadas em nossa dignidade sexual, somos violadas quando denunciamos nossos violentadores, somos violadas quando o mais alto grau de justiça do Estado é conivente com o contexto de degradação da nossa imagem.
Ou seja, não há abrigo! E falas como essas deixa claro que ainda precisamos avançar muito para termos o mínimo.
Ainda estamos expostas ao risco da condenação moral de homens fortalecidos por um sistema lucrativo de impunidades.
Todos os casos de violência contra a dignidade sexual das mulheres se iniciam num contexto de assédio moral. E não há como negar.
Na sessão de hoje, depois de muitos debates, inclusive da mídia, o Desembargador Silvanio refluiu seu voto, e deferiu o pedido da vítima.
Embora a ofensa a nós mulheres, dentro do contexto geral da fala, já tenha acontecido, o voto de deferimento do pedido do Des. Silvanio demonstra que numa análise equivocada e desassociada das provas do processo tanto a juíza de primeiro grau, quanto a relatora do processo, erraram. Portanto, seu voto corrigiu tal erro e se fez, finalmente, justiça à vítima.