Depois de disputar a presidência da República em 2018 e de ter disputado o segundo turno da sucessão municipal na cidade de São Paulo, Guilherme Boulos afirma que está "disposto a assumir o desafio de disputar o Governo de São Paulo em 2022". E animado para acabar com o "Tucanistão", como se refere à sucessão de governos do PSDB no estado.
Nesta entrevista exclusiva, o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e colunista da Folha prega a unidade do campo progressista para lançar um candidato único contra Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais do próximo ano.
Diz que o nome mais forte para disputar a sucessão presidencial hoje é Lula. E afirma que a unidade implica gestos. "Não é razoável que numa composição, numa aliança política, tenha um partido que seja a cabeça de chapa em todos os lugares, em nível nacional, em nível estadual. Não é razoável isso", diz.
O cenário político mudou depois de sua campanha a prefeito de São Paulo, em 2020. Lula recuperou o direito de ser candidato e a epidemia do novo coronavírus se agravou. Como vê a situação?
O maior desafio que a gente tem hoje é tirar o Brasil desse pesadelo. O Brasil virou o cemitério do mundo. Nós temos um genocídio deliberado. É devastador a gente ver 4 mil pessoas morrendo por dia, ver colapso na saúde sabendo que a gente só não está pior do que isso por causa do SUS, por causa de milhares de profissionais de saúde se arriscando todos os dias. E por causa dos freios que, de algum modo, algumas instituições estão colocando ao [presidente Jair] Bolsonaro.
Por isso eu acho fundamental a instalação da CPI da pandemia. Se for séria, ela vai apontar crimes de responsabilidade do Bolsonaro ao ter negado a vacina, ter boicotado medidas de isolamento sanitário. E pode ser o primeiro passo para o impeachment.
Não dá para simplesmente esperarmos [a eleição de] 2022.
E nós estamos vivendo também uma pandemia da fome. São quase 20 milhões de brasileiros com fome, desemprego estourando, bujão de gás a R$ 100, inflação de alimentos. E nesse contexto o Bolsonaro corta o auxílio emergencial.
Um dos projetos ao qual tenho me dedicado muito é o das cozinhas solidárias do MTST. Viajei para Planaltina, no Distrito Federal, para Roraima, no extremo norte [do país] para inaugurar essas cozinhas, para combater a fome, para dar visibilidade a esse problema.
Numa crise dessa dimensão, o impeachment não traria ainda mais turbulência? E não é inviável o impedimento de um presidente com o apoio que Bolsonaro tem?
Não há turbulência pior para o Brasil do que 4 mil mortos por dia. Tirar o Bolsonaro é a possibilidade de o Brasil sair da crise, tanto econômica quanto sanitária. Com ele, não há saída para a crise que o Brasil enfrenta.
E acho que a lealdade do Centrão ao Bolsonaro tem limites. Aliás, seria inédito na história política brasileira que o Centrão fosse fiel até as últimas consequências. Eles vêem o Bolsonaro se desgastando como está, no pior índice de apoio social desde o início do governo.
O Centrão também está preocupado em reeleger seus deputados no ano que vem. Se o presidente vira tóxico, eles podem pular do barco e isso cria as condições para o impeachment. O trabalho tem que ser nesse sentido.
Seria o terceiro impeachment da história recente do Brasil. Não está na hora de o país talvez virar essa página de impedimentos e colocar as coisas em outros termos? Estamos a pouco tempo de uma eleição, em que o voto pode decidir o destino do presidente.
Se nós olharmos, o Bolsonaro fez coisas muito mais graves do que o [ex-presidente Fernando] Collor [que sofreu impeachment em 1993]. A Dilma [Rousseff] não cometeu crime e foi "impeachmada".
É evidente que queremos estabilidade para a democracia brasileira. Agora, é possível estabilidade com um genocida no poder? É possível estabilidade democrática com alguém que defende ditadura militar e tortura? Eu acredito que não.
O senhor fala de unidade do campo progressista. Seis presidenciáveis de centro ou centro-direita assinaram recentemente um manifesto que incluiu o Ciro Gomes. Ele está no campo progressista ou no desses presidenciáveis?
O campo progressista é quem se coloca na oposição ao Bolsonaro tanto no seu autoritarismo político como também na sua política econômica neoliberal e anti-popular. Essa é uma definição importante.
Você ter uma frente democrática contra o Bolsonaro eu acho importante, bem como que figuras que sempre foram historicamente da direita ou da centro-direita também se oponham ao bolsonarismo nos dias de hoje.
Agora, isso não basta. Sobretudo se a gente fala de um processo eleitoral. Numa eleição você não vai dizer só o que você não quer. Você tem que apresentar para o povo o que você quer.
Não dá para ignorar o que trouxe o Brasil para 14 milhões de desempregados, com quase 20 milhões de pessoas com fome, com a economia devastada, o país está em pandarecos. O que trouxe a gente até aqui foi uma política neoliberal, uma política criminosa de cortes, de ajustes, que não se preocupa com o povo e amplia as desigualdades.
O corte importante para uma unidade progressista em 2022 é ter um projeto popular, de reconstrução nacional com retomada de investimentos públicos, com combate às desigualdades. E que hoje passa sem sombra de dúvidas também pela revogação do teto de gastos, de colocar na mesa a ampliação da base monetária a tributação progressiva. Esses são pontos importantes de demarcação?
O Ciro está lá ou cá?
Ele defende essas posições. Agora, Ciro busca um arco de alianças que eu francamente acredito que nem é possível [fechar]. Ou alguém acha que a centro-direita brasileira não vai ter uma candidatura própria? Eles vão ter.
E não seria o Ciro?
Eu vejo isso como bastante improvável, até mesmo pelas posições sobre política econômica que o Ciro expressa abertamente.
Eu acho importante que o [ex-ministro da Saúde Luiz Henrique] Mandetta, o [governador de São Paulo, João] Doria, o [governador do Rio Grande do Sul, Eduardo] Leite se coloquem contra o Bolsonaro. É melhor do que estarem a favor dele. Deixa o Bolsonaro isolado. Mas acho que é uma certa ilusão achar que esses setores possam estar juntos com a esquerda eleitoralmente em 2022. A direita brasileira, a centro-direita, terá candidatos.
E no segundo turno?
No segundo deles, eles se dividem [caso fiquem fora da disputa]. Uma parte deles pode compor com um projeto progressista. Por isso é importante ter pontes. Eu não rejeito essas pontes de diálogo. Mas não vejo possibilidade de aliança em primeiro turno. Tem uma diferença fundante [entre os dois grupos] que é a agenda econômica, a visão do país.
Em torno de quem se daria essa união que você prega do chamado setor progressista? Em torno do Lula, se ele for candidato, até mesmo por essa força incontrastável dele nesse campo?
Eu defendo essa unidade nacional do campo progressista. Temos que ver qual é o nome que vai ter melhores condições de derrotar o Bolsonaro em 2022.
Se for o do Lula... hoje é. Estamos a um ano e meio da eleição. É evidente que a unidade tem que ser construída em torno do nome com melhores condições de derrotar o Bolsonaro. Mas também em torno de um projeto.
A decisão sobre candidatura em 2022 também, da parte do PSOL, não é uma decisão individual minha. Ela vai passar pelo debate coletivo do partido. O partido tem congresso marcado para o segundo semestre e vai poder se definir.
O nosso foco tem que ser derrotar o bolsonarismo e apresentar um projeto de reconstrução nacional.
Isso passa por um debate de um projeto nacional. Unidade se constrói com gestos dos dois lados. Unidade é uma via de mão dupla.
Uma pesquisa do Ipespe divulgada pelo jornal Valor Econômico na semana passada mostrou que você aparece com 16% para o Governo de São Paulo. Seria um projeto para 2022?
Eu devo te confessar que tenho muita disposição de acabar com o "Tucanistão" [a sequência de governos do PSDB no estado].
Já deu. Tem um cansaço, um desgaste do PSDB com essa mesmice tucana governando o estado há mais de 30 anos. Uma capitania hereditária com histórico de roubalheira, máfia da merenda, do metrô, do Rodoanel.
Ontem mesmo a Folha colocou [uma reportagem que mostrava] 620 obras paralisadas no estado. E ainda enchem a boca para falar de gestão.
Derrotar o "BolsoDoria" [o slogan foi lançado pelo então candidato ao Governo de SP João Doria em 2018] em São Paulo é muito importante.
E muita gente me procurou depois das eleições de 2020 [em que Boulos disputou a Prefeitura de São Paulo], em que a gente teve mais de 2 milhões de votos.
Lideranças partidárias, lideranças sociais, colocam esse debate sobre uma candidatura ao governo do estado.
Tenho visto pesquisas que nos colocam inclusive em primeiro lugar, em empate técnico com outros candidatos.
Preciso fazer naturalmente esse debate com o meu partido. Mas eu estou disposto a assumir o desafio de disputar o Governo de São Paulo em 2022. E construindo uma unidade dos progressistas. Sem unidade é muito difícil derrotar a máquina do PSDB.
O que seria essa unidade? Uma aliança com o PT? Com que outros partidos?
Eu tenho dialogado e quero fortalecer esse diálogo com todos os partidos do campo progressista.
Eu não vou citar nominalmente até em respeito a eles, que devem estar discutindo também os seus caminhos, os seus projetos.
Mas quero fazer esse debate de ampliação do campo progressista para que a gente consiga acabar com essa hegemonia nefasta do PSDB em São Paulo.
Na disputa para prefeito, em 2020, você falava que se o Fernando Haddad fosse candidato, não entraria na disputa. Ele não foi, e você, sim. Manteria o seu nome mesmo com ele na cédula? Ou, depois de ter saído da eleição com 2 milhões de votos para prefeito em 2020, o diálogo hoje seria um pouco diferente?
Eu nunca condicionei o lançamento da minha candidatura a prefeito a outros nomes. Eu tenho muito respeito pelo Haddad, uma relação de amizade com ele.
Agora, em primeiro lugar acho que ele não vai ser candidato. O que tenho visto é que ele quer estar ajudando o Lula na construção de um projeto nacional.
Tem uma outra coisa: unidade tem que ser uma via de mão dupla. Unidade implica gestos.
Não é razoável que numa composição, numa aliança política, tenha um partido que seja a cabeça de chapa em todos os lugares, em nível nacional, em nível estadual. Não é razoável isso.
É claro que ainda está muito cedo. Estamos a um prazo longo da eleição. Nesse momento a minha preocupação é o enfrentamento à pandemia. É o enfrentamento à fome. Todas as minhas iniciativas políticas estão nesse lugar.
Ainda não é momento para campanha. Mas eu acho que nós temos, sobretudo após as eleições municipais, legitimidade para dialogar com esse campo político para buscar construir uma candidatura unitária que enfrente o PSDB.
Ou seja, não faria sentido ter um candidato do PT como cabeça de chapa para presidente, o PT como cabeça de chapa no governo do estado, e vocês como coadjuvantes.
É o que eu te disse: unidade tem que ter via de mão dupla e tem que passar por uma discussão de projeto.
Eu estou aqui colocando uma disposição inclusive por busca e procura de diálogo com um conjunto de lideranças do estado de São Paulo.
Essa disposição ainda precisa ser dialogada com o meu partido. Estamos a um ano e meio da eleição. Não é momento de a gente centrar a pauta política em eleição.
Acho que é momento de centrar a pauta da oposição em impeachment do Bolsonaro, em medidas contra a fome, em retomada do auxílio emergencial de R$ 600. Na vacinação do nosso povo. O foco é esse.
Agora, para se ter aliança, é preciso gestos de todos os lados.
Há sempre uma comparação da história do PT com a do PSOL. O PT veio lá de trás e foi ganhando aos poucos eleições, assumindo prefeituras, governos estaduais. E muitos quadros foram se formando, com experiência administrativa. O PSOL estaria preparado para assumir o Governo de São Paulo ou falta um pouco de músculo, de quadros, de experiência?
A gente juntou na candidatura à Prefeitura de São Paulo alguns dos maiores especialistas da cidade, que participaram de gestões públicas, que estão fazendo estudos diariamente na academia.
Para governar, você precisa ter equipe, um bom grupo. Estamos construindo um excelente grupo. Capacitado. Que conhece a realidade de São Paulo. Conhece a realidade do Brasil. A gente criou um gabinete paralelo que está acompanhando os problemas da cidade.
Tenho dialogado com muita gente que conhece os problemas do interior, construindo essas pontes.
Agora, até para fazer um paralelo: o PSDB se apresenta como bom de gestão. O Governo de SP tem o maior orçamento do país. Olha a situação da pandemia. Temos quase 100 mil mortos [por Covid-19] em São Paulo. Dá para dizer que é uma boa gestão?
O Doria é bom de marketing. Ele tenta capitalizar para ele pessoalmente a vacina do Instituto Butantan, enquanto ele queria privatizar o Butantan no início do governo.
Diz que defende a ciência e tentou cortar 1/3 da verba da Fapesp, que é o principal instituto de pesquisa científica do estado.
Diz que defende a vida, e disse em 2018 que a polícia tinha que atirar para matar. Tem uma condição errática, elitista da pandemia. R$ 245 bilhões de orçamento e não conseguiram dar respostas. Porque não basta, em uma pandemia, você dizer para as pessoas ficarem em casa. A conscientização é importante. Mas você tem que dar as condições para as pessoas ficarem em casa. Ainda mais em um país tão desigual como o nosso.
E o governo do estado, com todo o orçamento que tem, não fez, não deu apoio econômico.
Pega o [governador] Flávio Dino, no Maranhão. Com um orçamento muito menor, deu vale-gás para as pessoas comprarem butijão.
Precisaria ter em São Paulo um auxílio. A prefeitura criou um de R$ 100, que não dá nem para comprar um butijão de gás, e o Governo de SP criou um que vai atender a um percentual ínfimo das pessoas que precisam.
Precisaria ter medidas de apoio a pequenos empreendedores, microempresários, comerciantes que estão com as portas fechadas. Não teve nada. Repito: é uma condução errática e elitista.
A vacina contra a Covid-19 não é um trunfo do governador Doria?
Não deveria ser mérito de um político não ser negacionista. Deveria ser obrigação. Embora o governo dele tenha dado as condições, a vacina é mérito de milhares de servidores da saúde, de cientistas e pesquisadores públicos que colocaram ela em pé no Instituto Butantan.