As ações semanais de duas instituições voluntárias focadas em distribuir alimento e água para as pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade social em Goiânia demonstram que, apesar de uma breve melhoria econômica no estado, a insegurança alimentar persiste nas ruas da capital.
Cerca de mil pessoas vão até o setor Norte Ferroviário, toda quinta-feira e domingo, para buscar a doação, estimam os voluntários. A quantidade vai em direção contrária aos índices de deflação e aumento de oportunidades de emprego em Goiás.
Caruene Rosa de Jesus é goianiense e viveu 7 dos 71 anos de idade nas ruas. A primeira refeição da senhora no dia foi servida pelas instituições voluntárias. Um pote médio de canjica, junto a um copo de água, que não havia bebido havia dois dias. A mulher dorme embaixo dos comércios da Avenida Independência, onde são realizadas as ações alimentícias. Com um saco de latinhas em mãos, a mulher, que vive de coletar material reciclável, possui filariose linfática (elefantíase) e sobrevive entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e as atividades voluntárias de diversas entidades.
Apesar de ter um histórico de dois anos em abrigos de estrutura da Prefeitura, como a Casa de Acolhida I, Caruene não pode permanecer no local por mais tempo e diz entender que não poderia morar para sempre no espaço. Depois de três colheres de canjica, a idosa, que disse não ter família, olha ao redor concluindo que a quantidade de pessoas indo ao encontro da janta voluntária aumentou nos últimos anos, e destaca a crise provocada pela pandemia da Covid-19.
Ela agradece por nunca ter tido problemas com as Organizações não Governamentais (ONGs). “Todo mundo, tanto os voluntários quanto o pessoal que dorme nas ruas nunca me tratou mal, ainda bem”, diz.
Antes mesmo das equipes voluntárias chegarem, a fila formada já se organizava à espera. Um dos homens que aguardava pede em volta para que ninguém pegasse mais de uma garrafinha de água, com a finalidade de fechar a conta para todos que estavam ali. Leidiane dos Santos, de 38 anos, aguarda ao lado do marido pelo início da distribuição.
O casal deixou os três filhos em Brasília com a família, e chegou em Goiânia em busca de melhores oportunidades de trabalho. É a primeira vez deles na fila, da qual ficaram sabendo pelas ruas. Ela diz nunca ter visto algo parecido na capital federal.
“Agora nós estamos na rua até a gente se organizar, já vimos que em todos os cantos tem emprego disponível, nunca dormimos na rua, é uma situação nova”, afirma. A mulher relata que não foram aceitos nos albergues por falta de vaga e que ainda estão em busca de uma assistência social para se adaptarem. A respeito do projeto, ela destaca o oferecimento de água. “É muito importante saber que lembram da gente com esta delicadeza, quase chorei”, ressalta.
Outra mulher, de 32 anos, que preferiu não ser identificada, é migrante do interior do Pará. Ela conta que chegou no município quando criança, mas desde que perdeu a mãe, ainda nova, vive nas ruas e sobrevive sem saber quando será o próximo prato de comida. “Eu venho nos dias que eu sei que distribuem, mas nem sempre consigo chegar a tempo para pegar, penso que se ganho alguma coisa é preciso dar amém”.
A mulher completa dizendo que já houve casos de confusão. “Acontece, no período noturno é meio tenso, as pessoas estão com fome o dia todo e nervosas, acaba se envolvendo em briga, eu mesma já peguei cadeia por isso”, finaliza.
Outro rapaz nortista, de Manaus, que optou por não ser identificado, completou 29 anos recentemente e está alegre por ter conseguido trabalhos de bico para tirar os documentos pessoais necessários e alugar um barraco, como diz.
“Estou há dois anos na rua, pedi muito dinheiro em porta de loja, meu sonho é ser compositor, por isso vim para cá. Já tive momentos ruins, mas hoje tenho Deus no coração e estou evoluindo”, afirma. O jovem acrescenta que as doações minimizam o sofrimento porque o medo de não ter o que comer traz muita dor.
Necessidade
Marcos Maria do Prado, gerente do Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua, unidade integrante da estrutura da Diretoria de Proteção Social Especial, entende que as entidades são livres para realizarem a ajuda em qualquer ponto que queiram, mas que a Prefeitura possui todo um aparato para o recebimento dessas pessoas, caso elas queiram, nos serviços sociais públicos.
“No Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) servimos café, almoço, lanche e ofertamos banhos todos os dias no local, cerca de 200 marmitas por dia e também distribuímos mais 200 marmitas nos locais de maior aglomeração”, diz. Ele defende que o atendimento social da Prefeitura não pode ser feito em meio às ações, como questionam alguns integrantes, por exigir um cuidado maior e sigilo. (Manoella Bittencourt é estagiária do GJC em convênio com a PUC-Goiás, sob supervisão do editor Rodrigo Hirose)
Problema é mais social que econômico
O mestre em Economia Marcus Antônio Teodoro explica o porquê de a situação de fome persistir mesmo diante de um cenário em que indicadores macroeconômicos melhoram. O especialista chama atenção para falta de políticas públicas eficazes para amparar as pessoas em cenários vulneráveis.
Ele entende que a permanência de pessoas buscando essas doações não diz respeito a uma característica econômica, mas, sim, social.
Marcus avalia que o caminho para um emprego formal é mais difícil tanto para permanência de quem nunca esteve acostumado quanto por falta de instrução dos candidatos às vagas. Mas reforça que há o problema comportamental. “Em economias mais desenvolvidas, por exemplo, na cidade de Nova Iorque, existem milhares de pessoas vivendo nas ruas e com fome, mas existe também o agravante de quem tem dependência química, problemas psicológicos, entre outros”, argumenta.
Para ele, dependendo do histórico do indivíduo, pode haver resistência e preconceito dos empresários na hora de escolher candidatos às vagas.
Por esse motivo, o especialista afirma que os governos de âmbito municipal, estadual e federal deveriam desenvolver uma espécie de benefício fiscal para que os empresários empreguem quem realmente deseja sair das ruas. “Um programa mais eficaz de capacitação, com apoio de escolas de negócios e treinamento pode tornar aquela pessoa excelente profissional, caso ela queira e tenha auxílio do poder público”, comenta.
Segundo dados divulgados na terça-feira (11) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro Goiânia teve o terceiro mês consecutivo de deflação.
A geração de empregos no estado também foi positiva. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) divulgou há duas semanas que Goiás teve saldo positivo de 7.587 vagas de emprego com carteira assinada, em agosto deste ano.
O levantamento apontou ainda que a região Centro-Oeste teve a maior geração de emprego no campo entre janeiro e agosto. Ao comparar com o mesmo período de 2021, o aumento no saldo de postos de trabalho criados no agronegócio em Goiás chegou a 13,2%.
Em contrapartida, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Visigan) evidencia que aproximadamente 858 mil pessoas passam fome em Goiás, sendo 11,9% de residências sofrendo com o agravamento da fome.
Grupos voluntários veem aumentar a presença de crianças
O quarteirão da Avenida Independência escolhido para a ação social reúne duas instituições de Centros Espíritas há mais de uma década. A relação dos voluntários já se tornou fraternal com alguns dos rostos que passam pelas filas. “Já teve um que me chamou de pai”, lembra Renato Sampaio, de 44 anos, fundador do Centro Espírita de Regeneração Chico Xavier. O trabalho estende-se também às crianças, que recebem um olhar ainda mais atento, para proporcionar bons momentos no desenvolvimento social.
Um dia após o Dia das Crianças, Wender Veloso da Silva, de 45 anos, cofundador do Grupo Espírita Amor e Vida (GEAV), reuniu voluntários para uma programação infantil, recheada de sorvetes, bolos e guaranás. O aumento das crianças em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar acende um alerta na ONG, que sobrevive apenas de doações.
“Praticamente dobrou desde 2020 a quantidade de comida que precisamos fazer”, calcula Veloso. Ele conta que chega em casa todos os dias se sentindo grato em poder contribuir e que a motivação de fazer bem é a principal.
“Agradeço pela comunidade de não desistir. Hoje temos 40 voluntários e às vezes recebemos poucas doações, o que faz a gente pensar em desistir, mas a fé e esperança nos mantêm firmes”, afirma.
Welma Rodrigues, de 43 anos, contribui com a GEAV há 25 anos, desde a fundação, e enfatiza a importância da distribuição de brinquedos para as crianças. “São várias histórias emocionantes aqui, e ajudar faz eu me sentir útil para sociedade”, comenta.
A jovem mãe Sara Silva Coelho, de 18 anos, levou a filha de 2 pela primeira vez na ação infantil. As duas deixaram o Pará há 8 meses rumo a Goiânia, acompanhada do pai da menina. Balançando um saquinho de lembranças com uma mão e segurando uma boneca em outra, a criança fica sorridente na fila do bolo.
“Nossa situação está ficando estável aos poucos, mas não tenho condição de proporcionar muita coisa para ela, espero que no ano que vem a gente que compre os brinquedinhos”, desabafa a mãe.
A frequência de idas da filha de Guiberson Alves da Silva, de 36 anos, já é diferente. Sem saber especificar a quantidade de vezes que já foi até o local, Silva agradece por não morar na rua e diz que a filha já tem amizades iniciadas com outras crianças da ação. “É algo bom aqui, maravilhoso, é importante para ela poder receber esse tipo de atenção”, afirma o homem, que está desempregado.
Renato Sampaio, um dos fundadores das entidades espíritas, desabafa que o trabalho voluntário pode ser muito solitário e é bastante criticado - até por pessoas de religiões diferentes. “Como vamos falar de Deus se as pessoas não têm força o suficiente para levantar de tanta fome?”, questiona. “Não é só a comida, queremos ajudar a tirar das ruas, muita gente aqui tem feridas de abandono, violência, abuso sexual, gostamos de instruir como podemos também”, ressalta.
Marcos Prado, do Centro POP, lembra que no último Censo de População em Situação de Rua em Goiânia, feito em 2019, havia 1,2 mil registros.
Ele estima que na Casa da Acolhida I, para público masculino e LGBTQIA+, há 45 pessoas abrigadas, para uma capacidade de 50. Já na CAD II, voltada para mulheres, crianças e famílias, são 40 pessoas, que é a capacidade total. “Pode acontecer de uma pessoa pedir para não ser registrada por vergonha”, comenta.