Este mês, a equipe de cardiologia pediátrica do Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol) se deparou com um caso inédito de cardiopatia em um recém-nascido. Foi a impressão em 3D em tamanho real que jogou luz sobre o que ocorria com o órgão da criança e ajudou na abordagem cirúrgica. Diante da gravidade do caso, o bebê não sobreviveu, mas para os profissionais, o episódio revelou o quanto a tecnologia é fundamental para avançar no tratamento dos pequenos pacientes portadores de cardiopatia congênita.
Responsável pelo Setor de Imagem da Cardiologia Pediátrica do Hugol, a médica Mayra Barreto se esforçou muito para entender o caso do bebê de 20 dias, filho de um casal de caseiros de Jataí, no Sudoeste goiano. Ela já sabia que o primeiro filho do casal teve morte súbita no colo da mãe aos oito dias de vida.
Como ela se especializou no renomado Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, na capital paulista, sabia que imprimir o coração da criança em 3D poderia dar respostas que ela não conseguia obter nos exames tradicionais. O problema é que não havia histórico nesse sentido em Goiás.
Depois de enviar dezenas de mensagens, a médica recebeu a indicação do Laboratório de Ideias, Prototipagem e Empreendedorismo da Universidade Federal de Goiás (Ipe-Lab/UFG). O coordenador da unidade, Pedro Henrique Gonçalves, aceitou o desafio proposto por Mayra e em tempo recorde imprimiu o pequeno órgão. “Quando recebi, eu chorei. Há dois anos tento isso”, contou ela ao jornal.
A equipe do Hugol sabia que estava diante de um caso raro de síndrome de hipoplasia do coração esquerdo, que ocorre em 1 para cada 11 mil nascimentos, mas a condição do bebê era mais rara ainda.
“Ele tinha dois arcos aórticos associados a uma má-formação cardíaca. Ou seja, tinha problemas dentro e fora do coração”, explicou Mayra. O coração em 3D permitiu visualizar o dano externo e quando o bebê entrou no centro cirúrgico, a família já estava ciente de que o procedimento poderia não ter sucesso. Em condições semelhantes, em países europeus e na América do Norte, conforme a médica, os cardiopediatras costumam indicar a interrupção da gravidez ou paliativizar, ou seja, deixar que a criança viva até quando for possível. A equipe tentou a cirurgia na esperança de manter o bebê vivo.
“Toda a estratégia do procedimento cirúrgico se baseou no sentido de manter a circulação fetal. No útero, o bebê tem uma placenta que faz o trabalho de respiração e de promover a circulação. Nosso planejamento era tentar fazer o mais parecido possível com essa realidade, mas falhamos porque ainda não existe uma tecnologia capaz de garantir essa condição intra-uterina”, detalhou a médica Mirna de Sousa, coordenadora do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hugol e diretora da Sociedade Goiana de Pediatria.
Apesar do insucesso, Mayra e Mirna apontam a importância do coração 3D e lutam para que em futuros casos complexos ele esteja ao alcance nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) em Goiás. “O que essa tecnologia propõe é um diagnóstico com alto grau de precisão. Quando o cirurgião entrar no tórax no centro cirúrgico, não terá surpresa. Ele só vai executar o que foi previamente planejado, reduzindo o tempo de cirurgia, de anestesia e de risco para o paciente. Se o bebê vai a óbito, como ocorreu nesse caso, com o órgão em 3D na mão, conseguimos dar uma resposta à família”, enfatiza Mirna de Sousa.
Órgão artificial reduz riscos para o paciente
A coordenadora do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hugol, Mirna de Sousa, estima que, em média, são realizados mensalmente na unidade mais de 22 procedimentos cardíacos em sua área, desses 40% são de alta complexidade, mas desse total apenas 1% precisaria da impressão em 3D do órgão cardíaco.
“Quando nos deparamos com um caso de alta complexidade, o diagnóstico não é perfeito. A margem de dúvida no centro cirúrgico oferece maior risco”, ressalta Mirna. Ela entende que investir em tecnologia traz eficiência e, por consequência, menor custo para os cofres públicos.
Todas as respostas trazidas pelo primeiro coração em 3D impresso em Goiás, na opinião de Mirna e da responsável pelo Setor de Imagem da Cardiologia Pediátrica do Hugol, Mayra Barreto, justificam o investimento para beneficiar também outras especialidades. “Nossa expectativa é sensibilizar o Governo de Goiás e nossos parlamentares para a importância de adquirir uma impressora em 3D para atender as demandas do SUS” explica Mirna.
Ela defende um convênio com o Ipe-Lab/UFG, onde atuam técnicos preparados, capazes de dar respostas céleres, como aconteceu na semana passada.
O arquiteto Pedro Henrique, mestre e doutor em Engenharia, relata que uma impressora de última geração tem custo aproximado de R$ 1 milhão, equipamento que não existe no Ipe-Lab/UFG. “A ciência não descansa. As pessoas podem perguntar o que significa esse nosso movimento se a criança não sobreviveu. Significa conhecimento, nos ajuda a entender o problema, a planejar os próximos casos e a justificar para família o que aconteceu de forma palpável”, afirma Mirna. Ela lembra que o equipamento pode ajudar até mesmo pacientes no interior do estado. “Nós orientamos os médicos da ponta.”
Mayra lembra que em São Paulo uma empresa privada costuma cobrar em torno de R$ 15 mil para imprimir uma peça como a que ela conseguiu junto ao Ipe-Lab/UFG. “Só queremos que toda criança tenha a oportunidade de melhorar o seu tratamento, que tenha um diagnóstico correto. Essa família veio para Goiânia sem ter meios de se alimentar e quando a criança foi transferida para o Hugol, a preocupação era se eles teriam refeições. Se não fosse o SUS jamais teriam condições de acesso ao tratamento de qualidade europeu, como o que pudemos oferecer.”