Mais de 800 processos relativos a casos de estupro e estupro de vulnerável tramitaram no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) entre janeiro e setembro deste ano, sendo a maioria (73,18%) pelo crime de estupro de vulnerável. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Especialistas apontam para a recorrência dessas práticas criminosas e chamam a atenção para a reincidência de crimes sexuais.
Recentemente, a prática de crimes sexuais violentos voltou a chocar os goianos com o caso da estudante Amélia Vitória Oliveira de Jesus, de 14 anos, que desapareceu no dia 30 de novembro após sair de casa, no Jardim Esplanada, em Aparecida de Goiânia, para buscar a irmã mais nova na escola. O corpo dela foi encontrado com sinais de violência sexual no sábado (2).
O número de processos em tramitação por estupro e estupro de vulnerável apresentou retração em 2023 quando analisados os últimos quatro anos (confira quadro). Entretanto, a presidente da Comissão da Mulher Advogada (CMA) da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO), Fabíola Ariadne, explica que isso não representa, necessariamente, uma queda na ocorrência desses crimes.
“Primeiro, porque há subnotificações. As vítimas se sentem envergonhadas em denunciar, têm medo da divulgação, da revitimização, da opinião pública e do estigma que acompanha esses crimes. Segundo, porque podem ocorrer problemas de ordem burocrática, como falta de recursos e demora nos processos judiciais, resultando em uma aparente diminuição dos processos. Por fim, pode haver mudanças de entendimentos na aplicação da lei”, comenta a advogada.
Na realidade, o número de crimes sexuais cresceu entre os últimos dois anos. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o estado registrou 3,2 mil casos de estupro e estupro de vulnerável em 2021. No ano seguinte, foram 3,6 mil registros, um aumento de 11,2%. O estado teve variação acima da apresentada pelo Brasil. No País, foram 68,8 mil casos de estupro e estupro de vulnerável em 2021 e 74,9 mil registros em 2022, um crescimento de 8,2%. A maioria das vítimas são vulneráveis e mais de 80% são mulheres e menores de idade.
Reincidência
No caso Amélia, o cruzamento do DNA obtido nos órgãos genitais da adolescente com o Banco Nacional de Perfis Genéticos foi compatível com o sêmen de um homem, que fora colhido em outra vítima de estupro. Esse caso ocorreu em 2017, em Rio Verde. O homem é Janildo Silva Magalhães, de 38 anos, que foi preso. Além desses dois casos, ele também foi denunciado por uma tentativa de estupro no dia anterior ao sumiço de Amélia.
Em 2022, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) lançou um estudo sobre reincidência criminal no Brasil levando em consideração dados de 2008 até 2021. A média de reincidência no primeiro ano foi em torno de 21%, progredindo até uma taxa de 38,9% após 5 anos. A pesquisa também listou os crimes mais comuns nos quais os presos são réus e quais são os mais cometidos na reincidência. Destaque para quem cometeu o crime de lesão corporal apresentou reincidência pela mesma prática (18%), seguida do crime de ameaça (16%). Não há dados específicos sobre reincidência de crimes sexuais no estudo do Depen.
A coordenadora da Ouvidoria da Mulher da Câmara Municipal de Goiânia, Maria Clara Dunck, chama atenção para a falta de dados recentes sobre reincidência dos crimes sexuais, além de pesquisas e mapeamentos detalhados sobre essas práticas criminosas em todo o País. “Falta investimento nas pastas que trabalham com o assunto. Sem dados, é mais difícil traçar políticas públicas efetivas”, aponta.
Segundo ela, para além do trabalho de acolhimento das vítimas, como é feito pela Ouvidoria com as mulheres, é preciso que os agressores sejam punidos, mas também passem por um processo educativo a fim de mitigar a reincidência criminal. “É preciso existir um esforço em promover a igualdade de gênero. O agressor precisa trabalhar a conscientização É preciso que o agressor entenda que não é detentor do corpo de outra pessoa”, detalha.
A psicóloga do Instituto de Educação em Psicologia (IEP), Mônica Barcellos Café, participou de um projeto já encerrado da Pontifícia Católica de Goiás (PUC Goiás) que tinha como um dos intuitos a proteção de crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual por meio da tentativa de diminuir a reincidência dos crimes sexuais. Segundo ela, a maioria dos agressores eram pessoas conhecidas das crianças e adolescentes (leia mais abaixo).
Por meio de uma abordagem psicoterapêutica com presos da Penitenciária Coronel Odenir Guimarães (POG), no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, o projeto buscava promover a responsabilização dos agressores. “A nossa intenção era fazer com eles aumentassem o nível de consciência para que entendessem a gravidade dos próprios atos. Assim, poderiam interromper o ciclo. Pesquisas internacionais mostram como o atendimento psicológico influencia na diminuição da reincidência. É preciso pensar nisso, pois em algum momento eles vão sair da cadeia”, finaliza.
Maioria dos crimes ocorre em casa
A maioria das vítimas de estupro e estupro de vulnerável são violentadas dentro de casa e por pessoas conhecidas. É o que apontam dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. Em relação ao local em que ocorreu o crime, o documento mostra que a residência aparece com mais frequência: em média, 68,3% dos casos somados de estupro e estupro de vulnerável ocorreram na casa da vítima. Além disso, 82,7% dos autores eram conhecidos, sendo que familiares representam a maioria dos casos.
Por isso, a presidente da Comissão da Mulher Advogada (CMA) da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Goiás (OAB-GO), Fabíola Ariadne, chama a atenção para o combate da violência sexual, especialmente contra as mulheres, já que elas são a maioria das vítimas de estupros, por meio da vigilância constante com os vulneráveis e do reforço da ideia de necessidade do consentimento para a prática do ato sexual.
“Inclusive, isso se aplica nos casamentos. Aquela ideia de que era ‘obrigação’ da esposa manter relações sexuais com o marido ou companheiro, mesmo contra a sua vontade, não mais existe. Qualquer relação sexual ou ato libidinoso forçado é considerado crime de estupro, de acordo com a legislação atual do Brasil”, enfatiza a advogada.
Proteção
Ariadne destaca que existe uma rede de proteção para as vítimas de violência sexual. Segundo ela, em primeiro lugar a vítima tem que ter como garantia a proteção da vida e saúde. “Logo, é necessário ter medidas protetivas decretadas, como, por exemplo, ordem de restrição ou afastamento do lar, proibição de contato, apreensão de armas e monitoramento eletrônico. Na área da saúde, a vítima tem que ser encaminhada para unidades de saúde para tratamento e prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e gravidez indesejada, bem como tratamento psicológico”, discorre.
A advogada reforça a importância de a vítima receber aconselhamento jurídico e orientações quanto aos direitos que possui. “Para isso tudo funcionar, as investigações têm que ser em delegacias especializadas em crimes contra as mulheres ou crianças. Ao ser encaminhado o inquérito para o Judiciário, precisamos que os atores dos processos atuem com as lentes de gênero, para que o processo corra sem revitimização e com a devida punição do agressor”, frisa Ariadne.