A técnica de enfermagem Cássia Cintia, moradora de Goianésia, município a 175 km de Goiânia, já sabia na segunda gravidez que não teria dias fáceis pela frente. A menina que esperava, para fazer companhia ao irmão de 3 anos, tinha má formação. Somente após o nascimento ela foi diagnosticada com a Síndrome de Apert, uma condição genética rara que causa a fusão dos ossos do crânio, das mãos e dos pés. Nesta quarta-feira (27), aos dez meses, a criança será a primeira paciente a ser submetida no Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (Hecad) a uma cirurgia para tratamento de sindactilia complexa (fusão dos dedos envolvendo os ossos).
M.E. nasceu com sindactilia complexa, uma das características da Síndrome de Apert, nas duas mãos e nos dois pés. Nos corredores do Hecad, para onde a filha tinha sido encaminhada, Cássia abordou Renata Pedra, cirurgiã especialista em mão pediátrica. “Ela me viu atendendo outras crianças com deformidades nos membros superiores”, relata a médica, que voltou recentemente para Goiânia após se especializar no mais antigo hospital exclusivamente pediátrico da América Latina, o Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR). Em Goiás, Renata se integrou às equipes do Hecad e do Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer).
Ao avaliar a criança, Renata Pedra decidiu programar a primeira etapa do procedimento cirúrgico que, em Goiás, só havia sido realizado em duas ocasiões pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ambas no Crer. Nesta quarta-feira (27), ela irá separar dois espaços digitais da mão direita e fará a correção do hálux (dedão) do pé direito. Somente durante o procedimento, que deve durar entre quatro e cinco horas, serão programadas as próximas intervenções. “Vou usar uma moderna técnica europeia que modifica a tradicional de rotação de retalhos locais. Também haverá enxerto total de pele para cobertura cutânea, osteotomia e enxerto ósseo para separar a fusão óssea”, explica a cirurgiã.
Diretora-geral do Hecad, Mônica Costa comemora. “A missão do Hecad é ser uma unidade de média e alta complexidade e cada vez mais precisa assumir esse papel. Para nós é um motivo de orgulho, de satisfação e de realização, tanto para a gestão quanto para os profissionais que agora têm condições de fazer uma cirurgia dessa complexidade em Goiás e com segurança. Trabalhamos para ser uma referência nessa e em outras áreas.” Especialista em cirurgia de mão, Henrique Bufaiçal, foi pioneiro nesse tipo de procedimento cirúrgico no Crer.
Renata Pedra seguiu os passos do avô, Geraldo Pedra, o primeiro médico a ocupar a cadeira de Ortopedia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Após se graduar em São Paulo, se especializou em ortopedia e cirurgia de mão em Goiânia e decidiu ir para o Paraná para a subespecialização em cirurgia de mão pediátrica. Hoje é a única especialista em mão pediátrica do Centro-Oeste. O seu retorno para Goiânia possibilitou um recente mutirão no Crer para atender uma demanda reprimida de pequenos pacientes com deformidades congênitas. “Havia mais de 140 crianças no meu ambulatório. A mão pediátrica é um grande amor.”
Extraordinário
Desde que soube da má formação da filha, o cotidiano de Cássia Cintia e do marido, o vigilante Deleon, deu uma guinada. Encaminhada de Goianésia no sétimo mês gestacional para o Hospital Estadual da Mulher (Hemu), na capital, ela deu à luz M.E. na unidade e a bebê ficou 39 dias internada. A menina nasceu com deformidades que se assemelham ao do garoto Auggie Pullman do filme Extraordinário, produção norte-americana de 2017. No filme de Stephen Chbosky, o menino de 10 anos que nasceu com a Síndrome Treacher Collins, se submeteu a 27 cirurgias e precisou enfrentar o preconceito.
Cássia ainda não tem ideia de quantas cirurgias aguardam M.E., mas ela já está na fila de espera para dois procedimentos no crânio e na coluna no Hospital Sobrapar, em Campinas (SP). “Ela tinha chances pequenas de nascer viva. No início era muito difícil porque ela respira pela boca. Larguei meu emprego porque não confiava em ninguém para cuidar e vieram as dificuldades para conseguir o tratamento, o transporte e dinheiro para custear tudo isso”, relata. Uma semana antes da cirurgia da filha, no Hecad, Cássia não saiu de casa temendo que a menina pegasse algum tipo de infecção. “Coloquei tudo nas mãos de Deus, mas estou confiante de que vai dar certo.”
O que é
Também chamada de acrocefalossindactilia, a síndrome de Apert é uma doença genética que causa a fusão dos ossos do crânio, das mãos e dos pés. É caracterizada por deformidades do crânio, face, dentes e membros. A síndrome de Apert ocorre em um em cada 100 mil nascimentos. Não há ainda uma definição exata sobre a causa, mas muitos especialistas acreditam se tratar do resultado de mutação do gene “receptor 2 do fator de crescimento de fibroblastos”, ou FGFR2, que ocorre no início da gravidez.
O FGFR2 desempenha papel importante no crescimento ósseo e sua interrupção pode causar certas características da síndrome de Apert. Os sinais físicos que podem indicar a síndrome são: testa alta e proeminente, mandíbula superior subdesenvolvida, olhos proeminentes e dedos das mãos e pés fundidos.