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Jardineiro de 51 anos consegue registro civil e conquista primeiro documento pessoal, em Goiânia

Wildes Barbosa/O Popular
Invisibilidade: hoje com 51 anos, Jailson Jardas vagou por pelo menos 10 estados no Brasil sem um único documento

Desde que abandonou a casa familiar adotiva aos 13 anos, no interior do Pará, Jailson Jardas da Conceição Cruz, hoje com 51, vagou pelo Brasil sem um único documento. “Nunca precisei”, relata. Agora, pela primeira vez, ele tem em mãos a sua certidão de nascimento, a credencial que abriu as portas para a cidadania. O jardineiro chegou à sua real identidade através do trabalho do Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO).

Jailson Jardas conta que logo ao nascer, sua mãe biológica o entregou para a família que o criou. Eram três irmãos - Pedro, Osmar e Delzuite -, mas foi a última que assumiu o papel de mãe. A educação era rígida. “Eu apanhei muito para aprender a respeitar, a ser educado e a obedecer.” Ele nunca teve acesso a um documento, mas quando fez 13 anos decidiu sair de casa depois de ver a avó e a mãe adotiva perderem a luta contra o câncer. “Tive medo de morrer também, porque eles tinham a mente fechada e não queriam ir ao médico.”

Por um breve período, na infância, Jailson estudou numa escola adventista de Castanhal, religião que a família professava. Depois, com dificuldades financeiras, foram para a zona rural onde ele ajudava na capina e no plantio de batata e mandioca. Quase menino, inconformado com as perdas afetivas, seguiu para a capital, Belém, onde foi trabalhar nos barcos, como zelador de convés. “Eu dormia lá, trabalhando com um e outro para salvar o que precisava: comida, bebida e roupa.”

Passou por 10 estados

Este foi o começo da trajetória de um brasileiro que perambulou por pelo menos dez estados, além de Brasília (DF), sem portar um único documento sequer. “O Brasil é muito bagunçado. Em nenhum outro país eu viveria sem documento e aqui nunca precisei.” Desde que perdeu o vínculo familiar, Jailson adoeceu muitas vezes, se meteu em confusão e chegou a ser detido, viajou para longas distâncias, como o Acre e Rondônia e até frequentou a Câmara Legislativa do DF. “Nunca me pediram documento.” A maior parte do tempo viveu em igrejas e casas de família, trabalhando por cama e comida.

O jardineiro sabe ler e escrever em razão do acesso que teve ao ensino básico, em Castanhal. De lá para cá, fez um curso de Teologia e de cabeleireiro, profissão que adotou até a eclosão da pandemia da Covid-19. “No Pará peguei malária, sarampo, catapora e eu não quis pagar para ver como seria com esse vírus. Decidi abandonar o trabalho e me tornei jardineiro”, explica Jailson.

Em 2019, vivendo há quase um ano em Goiânia, ele foi atropelado na Avenida T-63. “Perdi quase metade do meu cérebro”, lembra. Foi nesse momento que, diante da necessidade de um procedimento cirúrgico, o documento fez falta. Na ocasião ele tinha sido acolhido na agremiação religiosa Ministério Casa, no Setor Pedro Ludovico, conduzida pelo pastor Davi Passamani. Com esse apoio, chegou ao CAM, da DPE-GO. O que sabia da própria história, Jailson não ajudou na busca da segunda via de sua certidão de nascimento.

Vontade de casar motivou busca pelo documento 

A assistente social Laura Borges, do CAM, relata que Jailson contou na DPE-GO que tinha nascido em Santa Maria do Pará e deu um sobrenome errado. “Foi o que ouvi em casa”, conta ele agora. As buscas foram infrutíferas e Jailson, em razão da pandemia, desapareceu. Ele voltou a buscar o CAM somente no dia 25 de novembro último, quando detalhou um pouco mais do que lembrava de sua infância. 

“Em 2019 não tínhamos acesso à Central de Informações do Registro Civil (CRC JUD), o que só ocorreu a partir do atendimento remoto”, explica a assistente social. Quando Jailson contou que tinha estudado na escola adventista, Laura entrou no site da instituição e pediu informações. E elas vieram 15 dias depois, confirmando o relato do jardineiro. Estava lá a certidão de nascimento, porém com Castanhal como local de nascimento, e com o sobrenome Jardas e não Jardes, como imaginava Jailson. 

“A Laura não deixou a minha história de lado, se empenhou, foi atrás do colégio onde estudei. Estou contente demais por ter a minha certidão de nascimento, hoje sou um cidadão. Já estou aguardando o RG e o CPF, depois vou tirar o título de eleitor e a carteira de trabalho”, fala Jailson com gratidão. Segundo ele, foi o amor por Raimunda, a mulher que arrebatou seu coração em 2018, que o fez voltar ao CAM. “Quero me casar. Nunca me casei, mas tive muitas mulheres. Mas aprendi que mulher é criatura de Deus e parceira do homem. Se for da vontade de Deus, quero ficar com ela até o final da minha vida.” 

Com os documentos em mãos, Jailson pretende voltar ao interior do Pará para fechar a sua história. “Quando eu era criança ouvi minha mãe adotiva falar que meu pai biológico tinha ciúme do irmão dela, o Pedro. Acredito que sou filho dele e minha mãe adotiva era minha tia. Não sei se ele está vivo, mas quero fazer o exame de DNA.” Do casal que o entregou para adoção, o jardineiro sabe apenas o primeiro nome: Isabel e Francisco. “Já fiquei muito revoltado com ela porque minha vida foi muito sofrida e continua sendo.” 

DPE tem busca ativa por documentos em todas as suas unidades 

O Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) é um órgão auxiliar da DPE-GO, com várias atribuições, entre elas a busca pela segunda via dos documentos. Embora a Defensoria tenha portas abertas para essa busca ativa em todas as suas unidades é para o CAM que o defensor encaminha a demanda quando não consegue localizar. O órgão funciona na unidade da DPE na Avenida Cora Coralina, no Setor Sul, em Goiânia. 

Laura Borges relata que são muitos os casos que chegam até o CAM. “Tem pessoas que não possuem nenhum documento, outras perderam e não sabem os dados e há aquelas que possuem registros dúbios”, enumera. Em uma das solicitações solucionadas, uma jovem que nasceu em casa, no interior do Pará, chegou a Goiás somente com a Declaração de Nascido Vivo. E, mesmo assim, era apontada como menino porque estava vestida com a roupa do irmão quando se apresentou à pessoa que elaborou o único documento que possuía até então. 

“Trabalhar na DPE é a realização de um grande sonho. É maravilhoso garantir dignidade e cidadania aos assistidos. Hoje sou uma pessoa totalmente realizada”, comenta a assistente social Laura Borges.

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