Geral

Mãe e filha se alfabetizam juntas em Morrinhos

Diomício Gomes
Agora alfabetizadas, Vitalina e Maria Helena fazem planos para o futuro: a mãe quer cursar desenho e informática, já a filha, ser professora ou gastróloga

As amargas lembranças da vida escolar traumatizaram Vitalina Inácia Neta, 81 anos, moradora de Morrinhos, no sul de Goiás. As apavorantes palmatórias, presentes nas salas de aula da infância, bloquearam o seu aprendizado. A reviravolta se deu somente agora, décadas depois, quando a filha primogênita, Maria Helena Silva de Lima, 59, a levou para o Projeto Alfabetização e Família, idealizado pelo Gabinete de Políticas Sociais (GPS) do Governo de Goiás e implementado pela Secretaria de Estado da Educação (Seduc). Juntas, mãe e filha concluíram o curso e fazem planos para o futuro.

Vitalina ganhou um nome que ela absorveu com muita propriedade. Alegre, inquieta e curiosa, descobriu há pouco que pode fazer muito do que sempre sonhou. Nascida e criada na roça, entre Morrinhos, São Luís de Montes Belos e Ivolândia, foi no ambiente rural que encontrou o homem que seria seu marido e pai dos sete filhos. “Cada lugar era um filho. Nossa família parecia cigana”, lembra a filha Maria Helena. A vida nômade incomodou Vitalina que queria para a prole o que ela não teve: escola.

“No meu tempo era difícil estudar. Tinha que atravessar rio e pasto. Meu pai tinha medo de vaca correr atrás de nós”, detalha Vitalina. A idosa aprendeu a ler e a escrever seu nome com letras mal desenhadas numa escola de fazenda, mas também foi lá que tomou pavor de matemática. “Eu ia para a escola com meu irmão e, como ele não conseguia entender direito matemática, levava muita palmatória. Ele sentia dor demais. Eu chorava de ver o sofrimento dele”, revela, sem esconder as lágrimas.

A merendeira Maria Helena explica que a mãe bloqueou todos os cálculos aritméticos do raciocínio, mas sempre insistiu para que os filhos estudassem. Eles sofreram as consequências do pensamento contrário do pai. Sempre que Vitalina matriculava as crianças, ele dava um jeito de desfazer o compromisso para colocá-las na lida da roça. “Eu aprendi um pouquinho”, lembra Maria Helena que também se casou na zona rural e adiou o projeto de ganhar mais conhecimento. Seus três filhos foram para a cidade, mas ela continuou na fazenda.

“Minha mãe parece mais jovem do que eu. Ela sempre foi muito inteligente e pegava em nosso pé para ler”, afirma Maria Helena. Ela lembra que Vitalina, cansada de ver os filhos perderem aulas, deixou o marido na fazenda e carregou a prole para Iporá. Na cidade, fez um pouco de tudo. Foi lavadeira, salgadeira e cozinheira. Em casa, tinha um fogareiro com serragem onde preparava o alimento dos filhos. “Eu pedi ajuda numa igreja”, revela Vitalina. Ali foi o caminho para trabalhar em creche, abrigo de idosos, mas também para se envolver com jovens. Fundou duas comunidades ligadas à paróquia e trabalhou com teatro e um coral.

Maria Helena e Vitalina passaram a viver juntas após o divórcio de ambas. A filha chegou a se transferir para Goiânia mas, como a mãe, preferiu voltar para Morrinhos. Avó de duas netas, a merendeira diz que foi incentivada pelos colegas e familiares a retornar para a escola. Foi assim que ela decidiu resgatar a mãe do limbo do aprendizado. “Eu tinha vergonha, pela idade. Amo o que eu faço, mas agradeço pela oportunidade de ampliar meu conhecimento. Agora quero fazer faculdade. Ou vou ser professora ou fazer gastronomia, como meu filho. Esse curso nos abriu portas para interagir e aprender.”

Vitalina recita o mesmo poema que apresentou no dia da cerimônia de diplomação, exibe os desenhos que cria e fala dos projetos futuros. “Quero fazer um curso de desenho e outro para aprender informática, assim consigo mexer no celular para falar com as pessoas”. Maria Helena é só orgulho da mãe e diz que, no contato diário com os estudantes do Colégio Estadual Coronel Pedro Nunes, onde é merendeira, os aconselha a nunca parar de estudar. “Minha letra estava feia demais. Eu aprendi muito agora.”

Atenção ao troco no supermercado 

Depois de seis meses de aulas, Vitalina e Maria Helena, ao lado de duas outras colegas, receberam no dia 15 o diploma de alfabetização, com direito a beca, muitos beijos e abraços, recebidos entre sorrisos e lágrimas. Vitalina chora, ao falar à reportagem sobre o momento. Ela atribui ao professor Waisser Hanun de Sousa, 53, a responsabilidade por quebrar o seu bloqueio com a matemática. “Nos primeiros dias ela fugiu das aulas”, lembra Waisser. Formado em Matemática, ele passou a se dedicar às vendas para manter a família, mas confessa que a experiência no projeto foi enriquecedora. 

“Dona Vitalina tem uma inteligência impressionante. Ela só não teve oportunidade. Fui contando historinhas e ganhando sua confiança”, conta Waisser. Maria Helena diz que a mãe já colheu os frutos do aprendizado. “Um dia desses ela foi ao supermercado, fez uma compra de 26 reais e pagou com uma nota de 50 reais. O caixa devolveu 18 e ela chamou a atenção na hora que o troco estava errado”. A mãe sorri e comenta: “É verdade, estou ficando esperta!”.

O Projeto Alfabetização e Família alfabetiza jovens, adultos e idosos de regiões vulneráveis. Em quatro anos atendeu 3.688 estudantes adultos em 149 municípios. Nesse universo estão 31 reeducandos das unidades prisionais de Aparecida de Goiânia, Anápolis e Águas Lindas de Goiás. Dados do Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos mostram que mais de 285 mil adultos em Goiás não foram alfabetizados no tempo correto. 

Coordenadora Regional da Educação, em Morrinhos, Walkyria Helena Romano Campos Castro diz que o projeto começou tímido em sua regional, “mas ganhou uma proporção incrível”. Ela comemora os resultados. “É uma alegria alfabetizar pessoas como dona Vitalina. Em todas as cidades temos relatos maravilhosos. Aqui em Morrinhos um senhor assinou seu primeiro contracheque depois de 25 anos de trabalho e foi aplaudido pelos colegas. Esse programa veio para transformar a vida das pessoas.” 

Waisser Sousa se sentiu privilegiado ao assumir a primeira turma em Morrinhos. “Eu nunca fui especialista nessa área, mas me deu vontade de fazer Pedagogia.” Ele conta que nos horários de aulas sempre aparecia alguém não alfabetizado querendo aprender também. “Tem muita gente nessa condição.” Ele revela que foi alfabetizado aos 9 anos, exatamente porque o pai vivia viajando para trabalhar e carregando os filhos, dificultando a continuidade escolar. “Eu tinha muita vergonha por ser o maior da turma.” 

Para Waisser, a sua própria condição foi importante para acolher as seis alunas que ganhou no projeto que, em média, dura seis meses por turma. São grupos pequenos, de até 10 alunos. As aulas são ministradas em locais e horários que acomodam a disponibilidade dos estudantes. “As quatro que foram até o final na primeira fase viraram minhas mães. Nunca vou esquecer dos olhos brilhando de uma delas, dona Praxedes, quando começou a ler”, detalha o professor.

Comentários
Os comentários publicados aqui não representam a opinião do jornal e são de total responsabilidade de seus autores.
ANUNCIE AQUI