O médico Rubens Mendonça Júnior, de 31 anos, acusado de matar duas pessoas em um acidente de trânsito no viaduto da Avenida T-63, em cima da Avenida 85, no Setor Bueno, em Goiânia, em abril de 2023, entrou na Justiça para cobrar cerca de R$ 1 milhão da seguradora que fez a apólice de seguro do seu veículo. O modelo, um Volvo/XC Ultimate ano 2023, está avaliado em R$ 350 mil e teria dado perda total, mas além de cobrar o valor integral do carro, o médico pede também outras indenizações previstas no contrato como danos materiais, corporais e morais estéticos.
O acidente se deu às 23h45 de uma quinta-feira, quando, acompanhado da esposa, Rubens acelerou o carro na Avenida T-63 ao sair do cruzamento com a Avenida T-4. A perícia técnica indicou que a velocidade alcançada pelo médico com o Volvo foi de 148 km/h, sendo que o limite no local é de 50 km/h. O veículo ficou sem contato com o solo ao atingir o ponto mais alto do viaduto, e, ao voltar ao asfalto, o médico perdeu o controle e atingiu a motocicleta em que estavam o motoboy Leandro Ferreira Pires, de 23 anos, e o garçom David Antunes Galvão, de 21. Os dois morreram no local. Outras duas pessoas também ficaram feridas.
Em abril, a Justiça manteve a decisão de desclassificar o crime pelo qual o médico estava sendo acusado de duplo homicídio qualificado previsto no Código Penal, que poderia levá-lo a um tribunal do júri, para homicídio culposo (quando não há intenção) na direção de veículo automotor, conforme prevê o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), com penas máximas bem inferiores e possibilidade de um acordo de não-persecução penal (ANPP). O caso, entretanto, segue um impasse desde outubro de 2023, e advogados das famílias das vítimas estão recorrendo da decisão.
Na petição contra a seguradora, o médico conta que “acidentou o veículo segurado, batendo-o em veículos e motocicleta” e que o “acidente se deu por conta de circunstâncias alheias à vontade do requerente”, sem entrar em detalhes sobre o que houve. Ele não citou as mortes, o “voo” por cima do viaduto nem a velocidade alcançada. Rubens se queixa do motivo dado pela seguradora para negar o pagamento do seguro: que ele “trafegava com velocidade acima do permitido para o local, sem nenhuma justificativa plausível para tanto”.
“Certo é que o autor (Rubens) jamais agravou o risco contratado com a seguradora ré, mesmo porque seu veículo era seminovo, de alto valor econômico, não sendo crível que ele colocasse seu interesse segurado desprotegido. Além do mais, consabido é que um veículo premium, quando sinistrado, perde sensivelmente seu valor de revenda, o que, definitivamente, o autor jamais buscou”, argumentou a defesa do médico na ação contra a seguradora.
O médico também apresenta outros argumentos para justificar o pagamento exigido. Um deles é que ele “suportou” o prejuízo com relação aos veículos atingidos por ele no acidente: “foram diversos veículos que tiveram que ser consertados” e “para evitar um dano maior”, o autor pagou as despesas oriundas. Também reclama que há na Justiça sete processos contra ele por parte das vítimas feridas e familiares das que morreram cobrando indenizações por danos materiais e morais que ao todo somam R$ 8,76 milhões.
O principal argumento para garantir a cobrança milionária, entretanto, é uma decisão de 18 de abril do juiz Lourival Machado da Costa, da 2ª Vara de Crimes Dolosos Contra a Vida e Tribunal do Júri, mantendo a desclassificação do tipo de crime pelo qual ele responde em relação ao acidente e negando os pedidos de revisão apresentados pelos advogados que representam as famílias das duas vítimas que morreram. O processo vive um impasse desde agosto de 2023, com posicionamentos divergentes dentro do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO).
Reviravoltas
Inicialmente, o promotor Sérgio Luís Delfim, da 92ª Promotoria de Justiça de Goiânia, apresentou denúncia contra o médico por homicídio com dolo eventual, afirmando que ele assumiu o risco de provocar o acidente ao acelerar o carro numa velocidade quase três vezes superior ao limite, numa subida (o que diminuiria o campo de visão de quem trafega à frente) e fazendo uma ultrapassagem proibida na contramão.
“O denunciado foi muito além da simples esfera da imprudência e negligência, assumindo o risco de matar ou lesionar qualquer pessoa que estivesse adiante”, afirmou o promotor na época. Neste caso, o médico poderia ir à júri popular.
No processo, o médico afirma que o acidente se deu por imperícia dele em relação a como utilizar o veículo, que envolve um processo elétrico de aceleração e de uso do pedal que o confundiu e que, além disso, um outro veículo o fechou mais à frente e que ele precisou se esquivar do mesmo para evitar uma colisão, o que o levou a perder o controle do Volvo. Na apresentação da defesa, alegou ter descoberto após o acidente que um mecanismo do seu carro faz com que ele acelere automaticamente ao perceber que está sendo feita uma ultrapassagem, algo que ele ignorava.
Após a conclusão da primeira fase do processo, antes da Justiça decidir se o denunciado vai ou não à júri, o promotor mudou o entendimento, dizendo que “tudo indica” que o acusado tirou o pé do acelerador antes do carro chegar no viaduto e que a versão sobre o mecanismo de ultrapassagem procedia. Sérgio, então, diz que o médico deveria saber antecipadamente como o Volvo funciona, mas que neste caso, agora sob nova óptica, “é inegável que a atuação do acusado naquela noite foi permeada de imprudência e negligência, mas não se confirmaram os indícios de dolo eventual mencionados na denúncia”.
Com isso, o juiz acatou o argumento do MP-GO, desclassificou o crime previsão na ação para o previsto no CTB, cuja pena máxima não chega a quatro anos, e transferiu o caso para uma vara de crimes de trânsito, passando por avaliação de um novo promotor, Everaldo Sebastião de Sousa, da 28ª Promotoria de Justiça. Com a mudança, o médico não iria passar mais por um júri popular e ainda poderia assinar um acordo, o ANPP, o que o livraria da possibilidade de cumprir a pena na cadeia e ter o nome fichado. Ele se comprometeria a pagar uma indenização e/ou outras medidas cautelares, como não poder dirigir ou prestação de serviços comunitários.
Inicialmente Everaldo chegou a sugerir que encaminharia o caso para um acordo. Entretanto, depois, entrou com uma nova petição negando a chance de um ANPP e pedindo que o processo voltasse para a vara original. Em um relato sobre o acidente, o novo promotor afirmou que o acusado assumiu e consentiu com o risco de acidente trágico por uma série de decisões tomadas entre o trecho de 355 metros do cruzamento com a T-4 até o cume do viaduto.
Com base nos depoimentos e laudos, Everaldo afirmou que o médico, de forma consciente e voluntária, resolveu testar a capacidade de aceleração do veículo, seguiu com o pé no acelerador até o momento do voo e só pisou no freio quando o carro voltou ao asfalto, mas sem controle da direção. Além disso, fez a ultrapassagem irregular, invadindo a pista da contramão e tentando voltar a correta em alta velocidade.
Família protesta
As famílias de David e Leandro contrataram advogados cada uma para entrarem no processo como assistente de acusação. Neste momento, surgiu um novo impasse, qual vara analisaria a entrada deles. Em fevereiro, decidiu-se que seria a de crimes dolosos, que aceitou a participação dos advogados, acolheu os recursos apresentados pelos mesmos, contra a transferência do processo para a vara de crimes de trânsito, mas não deu provimento a eles, mantendo a decisão anterior.
“Os assistentes de acusação manifestaram seu inconformismo, interpondo recurso em sentido estrito. (...) Analisados os fundamentos do recurso verifico que não foram apresentados elementos novos que possibilite a modificação do convencimento formado no julgado, com o deferimento do pedido de desclassificação da conduta imputada na denúncia, o que determina a manutenção da decisão objurgada”, escreveu Lourival no dia 18 de abril. Foi esta decisão que a defesa de Rubens apresentou para cobrar na Justiça o pagamento da seguradora.
Os advogados das famílias voltaram a recorrer da decisão, desta vez na segunda instância. A decisão sobre onde o processo vai tramitar ainda não é definitiva. Nesta quarta-feira (15), a procuradora Cleide Maria Pereira, da 42ª Procuradoria de Justiça, apresentou uma petição analisando os recursos e concordando com os argumentos dos advogados. Ela já havia se manifestado anteriormente no processo e apresentado uma tese similar a de Everaldo, para quem o caso deveria ficar na vara de crimes dolosos.
“Conforme delineado no parecer exarado (anteriormente) por esta Procuradoria de Justiça, caso exista discussão sobre a configuração ou não do dolo eventual em mortes causadas em acidente de trânsito, em que a imprudência do autor possa ultrapassar os limites da culpa consciente, não se pode retirar do conselho de sentença (o júri popular) a possibilidade de decidir pela condenação, absolvição ou desclassificação do fato”, escreveu a procuradora neste novo parecer.
Os advogados Rodrigo Lustosa e Roberto Mesquita, que representam, respectivamente, as famílias de Leandro e David, afirmaram que acreditam que o caso irá ficar com o tribunal do júri, pelos fatos acima expostos e pelo posicionamento da procuradora. A reportagem não conseguiu, nesta quinta-feira (16), contato com a defesa de Rubens