Mães atípicas é um termo que nos últimos anos tem ganhado relevância para designar mulheres que geraram filhos com algum tipo de deficiência. Essa maternidade singular impõe uma gama enorme de experiências complexas e desafiadoras. Na maioria das vezes, essas mulheres se sentem desoladas, sem acolhimento e sobrecarregadas, sobretudo de incertezas frente ao desconhecido. A própria identidade não existe e a autoestima é relegada a segundo plano. É vista somente como a mãe de alguém que cuida, mas nunca é cuidada.
Elas estão por aí, espalhadas em uma infinidade de lares e instituições. A reportagem foi buscar algumas delas no Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), unidade da Secretaria Estadual de Saúde inaugurada em setembro de 2002 que se tornou referência no atendimento a pessoas com deficiência física, visual, auditiva e intelectual. São mulheres que deixam seus lares, onde comandam também os afazeres domésticos, para estar ao lado dos filhos em tempo integral nos cuidados diários que se revelam essenciais. Eles estando bem, elas se revigoram.
A baiana Iranilde Barbosa de Souza, a Lídia, 45 anos, deixou Barreiras, a cidade natal, em 2002, para buscar recursos em Goiânia para o filho caçula, Gileno, na época com dois anos. “Desde que ele nasceu, eu senti que não era normal”, relata. Foram muitos exames e consultas para um diagnóstico definitivo, o que ocorreu no Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Gileno possui uma doença rara, a Síndrome de Prader-Willi, cuja característica principal é a hiperfagia, sensação constante de fome e compulsão por comida que pode levar à obesidade. Também o sistema nervoso central é afetado, o que causa atraso no desenvolvimento físico e mental.
O jovem, hoje com 23 anos e pesando 103 quilos, depende da mãe para tudo. Sua sobrevivência está sujeita ao uso do oxigênio, cilindro que é transportado junto com ele. Quatro dias na semana, mãe e filho vão para o Crer onde ele cumpre uma agenda de terapias e consultas. No HC, segue com acompanhamento nas áreas de nutrição, cardiologia e neurologia. “A única coisa que eu faço sem ele é academia. Este é o momento que tenho para mim”, revela Lídia, que também é mãe de Jaila Raiane, 25.
“Eu gostaria muito de trabalhar para ajudar meu marido no sustento da casa, mas é impossível”. Lídia é quase uma exceção entre as mães atípicas. Está casada há 26 anos com o eletricista Gileno Almeida de Souza, que supre todas as necessidades financeiras da família, que não são poucas em razão do que exige a saúde do caçula, que articula poucas palavras. Como é preciso percorrer longas distâncias toda semana, já que eles moram no Jardim Conquista, na região Leste de Goiânia, o único carro fica com Lídia para transportar Gileno Filho. “Aprendi a dirigir por isso, mas graças a Deus meu marido ajuda muito”, diz ela.
Abandono
Em 2012, o Instituto Baresi, um fórum nacional que reúne associações de pessoas com doenças raras, deficiências e outros grupos de minoria, publicou uma pesquisa que tem norteado os debates sobre a necessidade de políticas públicas voltadas para as mães atípicas. Segundo o estudo, 78% dos pais abandonam as mães de crianças com deficiência e doenças raras antes de os filhos completarem cinco anos de idade. Vistas como heroínas ou guerreiras, as genitoras ficam exauridas e adoecidas. Precisam lidar não somente com os cuidados com o filho e os afazeres domésticos, mas ainda com o peso financeiro.
Há um provérbio africano que é muito citado quando o tema é a maternidade atípica: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” Quando essa criança nasce ou é diagnosticada com algum tipo de deficiência, a mãe se vê num caminho solitário. “Na maternidade atípica, muitas vezes a mãe será a aldeia inteira dessa criança. E tentando suprir as necessidades do filho e dar conta do seu papel, ela vai se esgotar e inevitavelmente vai falhar e se sentir culpada”, escreveu Mônica Pitanga no site Canguru News. Educadora e palestrante, Mônica é autora do livro Pontos de Afeto - Lições da Maternidade Atípica, no qual relata a sua própria experiência.
“Faço tudo com amor de mãe”
Em 2006, Claudete Cândido, 52, chegou a Goiânia “com a cara e a coragem”, ao lado do casal de filhos, então com 14 e 7 anos. Ela nunca tinha viajado tão distante desde Redenção (PA), mas tinha a convicção que tudo valeria a pena. Dezessete anos depois, sabe que fez a coisa certa. “Eu vim para fazer o que o pai dela não quis”, revela. Ela é Rafaela, a primogênita, hoje com 32, que nasceu com Síndrome de Down e foi acometida de meningite no primeiro ano de vida, ficando com sequelas, como bexiga neurogênica que afeta o controle do ato de urinar, além de danos no fígado e nos rins.
Sem o apoio do marido, que não aceitava terapias que pudessem contribuir para o desenvolvimento de Rafaela, Claudete optou pela separação. “Foi muito difícil, mas ela é uma filha maravilhosa que Deus me deu. Ela veio para me transformar. Eu era muito fechada, vivia trancada dentro de casa.” A paraense alugou um barracão em Goiânia e foi à luta. Percorreu vários serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e foi agendando consultas e terapias. Conseguiu passe livre no transporte coletivo e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para a filha. Se integrou à Associação Down de Goiás (Asdown). “Ela é muito amorosa. Só não entrei em depressão por causa dela.”
Rafaela e a mãe têm uma agenda apertada. Duas vezes por semana estão no Crer onde a jovem tem sessões de musicoterapia, arteterapia e hidroterapia, além de academia e basquete. Três vezes por ano, ela precisa comparecer ao HC/UFG para acompanhamento médico. Na Asdown, Rafaela conta com a atenção de fonoaudiólogos, nutricionistas e com aulas de alfabetização e agora faz planos para entrar no grupo de dança contemporânea, um projeto de extensão da UFG, dentro da entidade. “Faço tudo com amor de mãe. Por ela não me canso”, ressalta Claudete. A mãe sente que precisa cuidar de sua saúde mental e, para isso, decidiu aprender a bordar na Asdown, atividade que exercita durante os longos períodos de permanência no Crer.
Como Claudete, Elaine dos Santos, 28, também é mãe solo. O pai de Arthur, 6, não segurou a onda quando, com poucos meses de vida, os resultados da paralisia cerebral do garoto ficaram evidentes. Os médicos descobriram ainda que o menino desenvolvia microcefalia. Elaine era vendedora num shopping da capital e trabalhou até os nove meses. “Quando ele nasceu foi um susto e um processo bem complicado. Tive que deixar o emprego para cuidar dele.” Inicialmente, o pai ajudava financeiramente, mas agora tudo depende do dinheiro do BPC. “É muito raro um pai que segue essa rotina com a mãe”, afirma, sem deixar de agradecer o suporte de sua própria família. “Minha mãe é a única pessoa em quem confio para deixar o Arthur.”
Cadeirante, Arthur chegou ao Crer com dois anos. Duas vezes por semana é acolhido nas sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, hidroterapia e fonoaudiologia. Consultas médicas podem ocupar até três dias, em algumas semanas. Moradora do Residencial Santa Edwiges, em Senador Canedo, Elaine usou o dinheiro do acerto trabalhista para comprar o carro com o qual se locomove com o filho. É um cotidiano duro, sem tempo para cuidar da própria saúde e da vida social, afetiva e profissional. “Tentei fazer um curso, mas não deu certo por causa das atividades dele. Não dá para conciliar.”
Com quadro depressivo, muitas mães precisam de atendimento psicológico
Há cerca de 20 anos, a fonoaudióloga Thais Nasser Sampaio acompanha a rotina das mães atípicas do Crer. Gerente de Reabilitação Auditiva e Intelectual da instituição, ela coordena as equipes multidisciplinares que acolhem os pacientes. “Enquanto terapeutas, precisamos caminhar junto com essas mães, mostrando os meios de enfrentarem os obstáculos. Atuamos também no sentido de empoderá-las. É uma responsabilidade social, vai além dos nossos muros. Ter um filho com deficiência é enfrentar barreiras e dificuldades”, destaca.
Num ambiente de convivência, batizado de Sala de Espera, as mães recebem lanche, trocam ideias e experiências e são abordadas pelos profissionais do Crer que, desde sua fundação, é gerido pela organização social Associação de Gestão, Inovação e Resultados em Saúde (Agir). Thais revela que muitas mães precisam de atendimento psicológico diante do quadro depressivo. “É um protocolo institucional para uma resposta rápida. Embora a mãe não seja o paciente da regulação, precisamos pensar sob o aspecto biossocial”.
O isolamento provocado pela pandemia da Covid-19 desestruturou o programa de voluntariado do Crer, agora em reformulação. Thaís explica que ele é um alicerce para o bem-estar das mães pelos cursos ministrados pelos voluntários. Nessas aulas, enquanto os filhos estão nas atividades terapêuticas, elas desenvolvem habilidades no aprendizado de trabalhos manuais e artesanato. “Além da convivência, elas têm a oportunidade de aumentar a renda familiar.” Uma vez por mês, é realizada na unidade a Feira Criativa, momento em que comercializam o que produzem.
Thaís explica que o Crer desenvolve o Projeto Solidarizar, que consiste na doação de cestas básicas aos pacientes em condição de maior vulnerabilidade. A ajuda é essencial para grande parte das mães que fazem malabarismo com o dinheiro do BPC, gasto em alimentação, transporte, medicamentos, fraldas,etc. Em outra vertente, há uma preocupação da instituição no processo de inclusão escolar, para que ela seja realizada de forma adequada. Preceptores do Crer ministram oficinas a profissionais da educação, abordando temas como acolhida, alimentação, locomoção e higiene.
Proposta na Câmara Federal cria Semana da Maternidade Atípica
Rondônia é o estado pioneiro na criação de uma lei que estabelece uma semana voltada ao tema da maternidade atípica. Por iniciativa do deputado Cirone Deiró (União Brasil), a Lei 4.615 de 2019 instituiu no calendário oficial a Semana Estadual da Mãe Atípica, realizada anualmente na terceira semana do mês de maio. Depois disso, em 2020, o então deputado federal Léo Moraes (Podemos), do mesmo estado, apresentou na Câmara Federal o projeto de lei 2859 criando a Semana Nacional da Maternidade Atípica, a ser comemorada também em maio.
No dia 25 de abril último, a proposta recebeu parecer favorável da relatora Flávia Morais (PDT-GO), mais de dois anos depois de chegar à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, na Câmara dos Deputados. Em seu voto, a parlamentar goiana explicou que “essas mulheres, além de lutar para terem suas maternidades desromantizadas, precisam lidar com preconceito, crises, dores, cuidado extra e com a exclusão da sociedade, tanto delas como de seus filhos”. A parlamentar goiana lembrou que a maioria não consegue trabalhar fora porque não existem lugares qualificados para deixar os filhos e eles também precisam de sua companhia nas recorrentes consultas e terapias.
“É preciso pensar em estratégias e políticas públicas que acolham e deem suporte às mães atípicas de modo a garantir debate do tema na sociedade brasileira e a busca de soluções relacionadas ao cuidado”, justificou Flávia Morais em seu voto pela aprovação da matéria. Não há previsão para o final da tramitação do projeto de lei. A ideia da Semana Nacional da Maternidade Atípica é chamar a atenção para essa parcela invisível da população feminina.