Esta semana, o embate entre a igreja Católica e alguns moradores de Olhos D’Água, distrito de Alexânia, a 120 km de Goiânia, ganhou mais um capítulo. O clima de animosidade, que começou em junho do ano passado, na primeira edição de 2023 da tradicional Feira do Troca, piorou no sábado (2) quando policiais militares foram chamados para conter o barulho que estaria atrapalhando a celebração religiosa na Paróquia de Santo Antônio, no centro do povoado. Na segunda-feira, a igreja amanheceu pichada.
A Feira do Troca, que ocorre duas vezes por ano em Olhos D’Água desde a sua primeira edição, em 1974, vinha sendo realizada na Praça Santo Antônio, onde foi construída a igreja católica, paróquia que é vinculada à Diocese de Anápolis. No dia 4 de junho, enquanto a feira acontecia lá fora, o pároco Cleiton Garcia avisou em sua homilia que a partir da próxima edição a feira não poderia mais ocorrer na praça, que pertence à igreja. Proprietários de restaurantes, bares, lojas e alguns moradores reagiram, dando início a um clima de revolta e acirramento.
Presidente da Associação de Artesãos de Olhos D’Água, Djalma Valois explicou ao POPULAR que o conflito entre as partes se agravou depois que um grupo de moradores se reuniu em julho com o presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Leandro Grass, para pedir o tombamento da praça e o registro da Feira do Troca.
Os processos já foram abertos. “São pessoas daqui que trabalham com cultura. Não temos apoio dos políticos do município. Fizemos uma reunião com o prefeito Allysson Lima que se manifestou favorável à realização da feira na praça, mas depois se omitiu sob a alegação de que a igreja é a proprietária.”
O ápice do revés ocorreu na noite de sábado (2), anterior à realização da Feira do Troca que, já naquele momento, tinha novo lugar definido pela prefeitura de Alexânia: uma rua acima da igreja.
Como a grande maioria dos estabelecimentos comerciais fica na praça e o povoado estava recebendo visitantes, o barulho desses locais incomodou o celebrante, o pároco de Alexânia, Allan Carlos Paiva, que já tinha encontrado faixas contra a igreja. Ele chamou a Polícia Militar que pediu o desligamento dos sons. Houve revolta, xingamentos, agressões verbais e uma DJ foi detida. Os policiais reagiram com spray de pimenta.
Em entrevista, padre Allan Paiva explicou que substituiu o padre Cleiton Garcia, pároco de Olhos D’Água, para resguardar a integridade física do religioso. “Pode haver discordância, mas não a falta de respeito. Ele está se sentindo ameaçado. Onde a verdade chega, a paz chega.”
Este é o mesmo sentimento de uma brasiliense que tem casa no distrito há seis anos. Ela engrossa o movimento dos que não concordam com o posicionamento do pároco e agora se sente ameaçada. “O que ouvi dos policiais militares me assustou. Eles chegaram em espaços privados sem mandado judicial e não aceitaram nosso questionamento. Levei spray de pimenta na cara. Estamos sendo constantemente ameaçados.”
Corte de árvores
Poucos dias antes da Feira do Troca o clima de animosidade ficou ainda mais evidente com a retirada de quatro árvores de grande porte do local. Segundo Djalma Valois, não houve uma justificativa plausível para a extirpação de antigas espécies, como um Jatobá e uma Maria Preta, que eram partes integrantes da paisagem local pela beleza e sombreamento.
A prefeitura de Alexânia explicou em nota que o corte das árvores foi solicitado “pela Diocese de Anápolis, proprietária do imóvel, sob a justificativa de que estão sendo realizadas obras de revitalização no imóvel”. Conforme a prefeitura, três exemplares apresentavam brocas e a autorização foi dada após avaliação da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Para compensar o impacto ambiental, a Diocese ficou de plantar 30 mudas de espécies típicas do Cerrado. Os moradores denunciaram o corte das árvores ao Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO).
O padre Allan Carlos Paiva lamentou o que chama de “narrativa distorcida” por parte do grupo descontente com as decisões da paróquia do distrito. “Não somos contra a Feira do Troca. Queremos que ela seja próspera e renda mais para os artesãos, mas há um pessoal querendo se apropriar da área externa da igreja que não é pública, mas privada. Essas pessoas podem discordar, mas juridicamente estamos amparados.” Conforme o religioso, foram “atitudes que ferem a moral cristã, como promiscuidade, uso de drogas e cultos não cristãos”, que levaram o pároco a vetar a Feira do Troca na praça, ao lado da igreja. “Você já viu alguém acampar na praça da matriz de Pirenópolis?”, questionou.
“O que eu vi nesse dia, só tinha assistido em filmes”
Comandante do policiamento de Alexânia, o tenente PM Gerson de Paula afirmou que a intervenção dos 14 policiais militares convencionais e quatro do Batalhão de Choque no sábado, em Olhos D’Água, foi para evitar “um massacre entre fiéis e manifestantes”. O tumulto começou, segundo ele, quando “uma manifestante colocou duas caixas de som viradas para a rua, com funks pesados”, contrariando o Código de Posturas.
“Pedimos para ela desligar durante o culto, mas ela desobedeceu, nos obrigando a apreender o som. Ela cuspiu em um policial e outros manifestantes nos xingaram e ameaçaram invadir a igreja.” A DJ foi levada para a Central de Flagrantes, em Águas Lindas, onde foi lavrado um TCO por desobediência e desacato.
Conforme o tenente Gerson de Paula, há décadas há um acordo entre bares e igrejas para que o som não seja ligado durante a missa. “Eu tenho 19 anos de PM e o que eu vi nesse dia, só tinha assistido em filmes. Pessoas bravas, rancorosas, com xingamentos e humilhações. Todos os manifestantes que praticaram racismo, por intolerância religiosa, calúnia, injúria e desacato estão sendo identificados e vão responder a inquérito policial.” No dia seguinte, a Feira do Troca ocorreu normalmente, sem nenhum incidente.
Entretanto, quando a segunda-feira (5) amanheceu, foram avistadas as pichações nas paredes da igreja. Alguns moradores, que temem se identificar, disseram que as inscrições foram feitas por membros da paróquia para incriminar aqueles que não concordam com a postura do pároco. Padre Allan Paiva diz que esta é uma “narrativa da esquerda” e que a Igreja está em paz. “A polícia está investigando. Já estão analisando os vídeos. Vamos deixar que ela faça o seu trabalho.”
Em nota, a Diocese de Anápolis não entrou no mérito do acirramento dos ânimos em Olhos D’Água, mas lembrou que “há anos a Paróquia Santo Antônio cedeu de forma gratuita a área de sua propriedade para a realização da Feira do Troca”. Sobre a retirada das árvores, a Diocese destacou que a revitalização da praça “foi decidida com com a anuência dos fiéis católicos, com o intuito de proporcionar um maior bem-estar para as famílias que residem em Olhos D’Água”.
Recuperação dos saberes tradicionais
O povoado de Olhos D’Água surgiu em torno de uma capela construída em 1941 em homenagem a Santo Antônio de Pádua por força de uma promessa de uma moradora local. As terras foram doadas à Igreja Católica por dois fazendeiros da região. Em 1958, o pequeno lugar virou um município, mas com a construção da BR-060, a cidade perdeu a condição de sede administrativa para Alexânia, fundada em 1963. A mudança desestruturou a comunidade local que ficou fragilizada economicamente. Foi esse cenário que sensibilizou a professora Laís Aderne, da Universidade de Brasília, ao chegar à localidade em 1973.
Com a intenção de reorganizar o arranjo produtivo da região, Laís passou a coordenar um trabalho para recuperar os saberes tradicionais. Por sua orientação, os mais antigos começaram a repassar seus conhecimentos aos mais jovens. Em 1974, ela criou a Feira do Troca depois de mobilizar amigos do Distrito Federal. Roupas, calçados e utensílios domésticos passaram a ser trocados por produtos da região. Já no ano seguinte era visível a melhoria da condição de vida dos moradores locais e a feira começou a atrair visitantes e novos moradores.
Laís morreu em 2005 quando a Feira do Troca já tinha se tornado o grande elemento de identidade de Olhos D’Água e também a maior atração turística de Alexânia. Embora o evento tenha perdido parte de sua originalidade em razão da entrada da comercialização de artesanato e outros produtos da região, é indiscutível o fomento que garantiu à economia do município. O bucólico lugar, a 14 km de Alexânia, no rastro de Laís Aderne, atraiu nas últimas décadas muitos brasilienses que se somaram aos nativos num sentimento de pertencimento.