O casal Fernando Oliveira dos Santos e Waldirene do Prado viu a vida mudar radicalmente em 2019 quando ela confirmou a segunda gestação. Vivendo em Guararema, na região metropolitana de São Paulo, e pais de uma menina de 4 anos, eles foram informados que o primeiro ultrassom indicava gravidez de siameses. Este foi o início da história de Heloá e Valentina, as gêmeas recém-separadas no Hospital da Criança e do Adolescente (Hecad), em Goiânia. Morando em Morrinhos, no Sul do estado, a família começa a estabelecer uma rotina após a alta das crianças.
A equipe da reportagem encontra Fernando, 28 anos, fazendo os últimos retoques da nova casa num condomínio popular da cidade, na saída para Caldas Novas. O casal financiou o imóvel pela Caixa Econômica Federal e fez a mudança quatro dias antes da cirurgia de separação das filhas caçulas. Há muito o que fazer por ali, mas nada que tire a alegria de estarem reunidos, no ambiente familiar. Heloá e Valentina são o centro das atenções pelos cuidados que exigem. Se não fosse pelos curativos aparentes, seria difícil imaginar que elas passaram há dois meses por um procedimento cirúrgico tão delicado.
As gêmeas ficam a maior parte do tempo ao lado da mãe, Waldirene, 35, no amplo sofá da sala. Embora queiram, ainda não podem ir para o chão. Ao alcance das mãos estão fraldas, gazes, pomadas, lenços umedecidos, água, brinquedos… As meninas se movimentam o tempo todo, brincam uma com a outra, disputam objetos e atenção, dão risadas, abraços, beijos e choram querendo o pai que está ocupado lá fora. Quando Kayla, 7, a primogênita da família chega da escola, a alegria aumenta. A mãe conta que a filha adora segurar as meninas e tem ajudado nos afazeres do dia a dia.
Quando a cirurgia de separação foi marcada para o dia 11 de janeiro deste ano, Kayla sentiu muito. A menina, que estuda numa escola do município, ficou sob os cuidados da avó materna, Maria do Carmo, a dona Carminha, 75, que veio de Osasco (SP) para dar um suporte à família. “Ela não conseguia entender porque o pai e a mãe tinham que ficar em Goiânia. Eu precisei explicar que agora as meninas estavam separadas e cada uma precisava de um deles”, detalha a avó. Heloá e Valentina são as duas últimas das 15 netas que ela ganhou dos cinco filhos.
A mãe das gêmeas diz que perdeu a conta do quanto já chorou desde que soube da condição das filhas e pelo que a família tem atravessado desde então. “Valentina é um milagre de Deus.” Ela relata que na noite anterior ao “retorno” da menina, fez um lanche no carro e teve uma crise de choro. “Quando voltei ao quarto, Heloá estava dormindo e Valentina sorriu e me deu tchau, logo dormiu. Fiquei pensando naquilo. No dia seguinte, ela abriu os olhos, procurando tudo. Fui conversando com ela e falando da cirurgia e da separação da irmã.”
A volta das gêmeas para Morrinhos despertou o interesse de curiosos. “Muita gente liga querendo vir aqui, mas as visitas estão restritas a pedido do dr. Zacharias (Calil)”. Somente um médico e o prefeito e a primeira-dama da cidade, Joaquim Guilherme e Eneida Figueiredo estiveram na residência. A ajuda proporcionada pelo casal, financeira e com itens como leite especial e cesta básica, tem sido fundamental para manter a família em Morrinhos. “Se não fossem eles, eu não poderia ter saído do aluguel e ficar em casa para cuidar das meninas com a minha mulher. Hoje vivemos de doações.”
E elas têm chegado. Algumas do exterior, de brasileiros que souberam do caso e entraram em contato com Waldirene pelas redes sociais. Cadeirinhas de refeição, de veículos, roupas e até o valor mensal necessário para pagar as parcelas da casa. “São pessoas enviadas por Deus. Ele sabe que não é fácil o que estamos passando. São anjos”, afirma Waldirene. Ela conta que, por enquanto, as gêmeas dividem a cama de casal com ela, mas já recebeu a promessa de um desses “anjos” da chegada de três camas de “princesa”. Fernando, que está dormindo no sofá, agradece.
O susto com o médico ‘motoqueiro’
A gestação de Waldirene foi toda acompanhada em Guararema. “Eu só vi que elas tinham braços e pernas no final da gravidez”, relata. Os médicos acharam melhor ela fazer o parto no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde as meninas nasceram no dia 3 de outubro de 2019. Os pais foram chamados dias depois para uma reunião. “A equipe pediu para escolhermos uma das gêmeas. Eu respondi que se fosse para fazer isso, as carregaria unidas pelo resto da vida”, lembra Waldirene. Somente aos cinco meses, o destino de Heloá e Valentina cruzaram com o do médico Zacharias Calil, também deputado federal no segundo mandato.
Até então, eles não sabiam da existência do médico goianiense que vem fazendo história separando siameses. Foi uma tia de Fernando que deu a dica depois de vasculhar a internet. “Eu não achei o telefone dele, mas mandei um e-mail, detalhando a história, sem enviar fotos. A secretária dele na Câmara Federal respondeu e disse que ele me ligaria. Não acreditei”, narra Waldirene. E o médico ligou deixando a mãe das gêmeas ainda mais confusa.
“A foto dele no Whatsapp é de um motoqueiro. Quando ele me pediu fotos das meninas, não tive coragem de mandar. Somente quando ele mudou para vídeo tive a certeza que Deus tinha mandado alguém. Eu não sabia se ria ou se chorava.” Como o médico pediu para ver as irmãs pessoalmente, foi uma correria. Sem dinheiro, a família recorreu a rifas e contou com a ajuda do Rotary de Guararema, que arrecadou objetos junto a duas dezenas de lojistas para realizar um bingo. Foi com esse dinheiro que a família veio para Goiás em maio de 2020, o lugar mais distante que tinham ido até então.
A estadia em Morrinhos, a 132 km de Goiânia, foi garantida por outro “anjo”. “A prima da vizinha do meu avô nos cedeu a casa mobiliada dela que estava fechada”, detalha Fernando, numa daquelas histórias que parecem inacreditáveis. Com o avançar dos cuidados e a certeza de que tudo daria certo para as crianças, a família alugou a própria casa em Morrinhos no final de 2021. Fernando deixou em Guararema o emprego numa metalúrgica e Waldirene a função de salgadeira.
A família está bem adaptada à cidade goiana e não pensa em retornar a São Paulo. Desde a alta hospitalar das meninas, eles se deslocam para Goiânia todas as quartas-feiras para a avaliação e curativos no Hecad. Na última arriscaram o primeiro passeio com elas num shopping, após a separação. Não tiveram como fugir de curiosos e dos pedidos de fotografias. Afinal, desde que chegaram a Goiás, se tornaram celebridades, tamanho o interesse da mídia pelo caso das meninas.
Cirurgião não acreditava na sobrevivência de Valentina
De Copenhague, para onde viajou com outros três colegas parlamentares a convite da embaixada da Dinamarca para conhecer o sistema de saúde do país, Zacharias Calil explica o futuro de Heloá e Valentina. “Não há nada programado para elas em termos de cirurgia, pelo menos antes dos cinco ou seis anos. Foi muito difícil chegar aonde chegamos por causa da ausência de musculatura no abdome, mas elas estão usando uma tela que é o que existe de mais moderno.”
As gêmeas foram as primeiras siamesas separadas no Hecad, unidade da Secretaria Estadual de Saúde de Goiás, referência em média e alta complexidade idealizada por Zacharias Calil e inaugurada em janeiro de 2022. Unidas pela bacia, dividindo intestinos grosso e delgado, fígado e genitália, as irmãs exigiram uma complexa cirurgia. Durante mais de 11 horas permaneceram no centro cirúrgico 48 profissionais, entre eles seis médicos voluntários, duas da Bahia, um do Distrito Federal e três de Goiânia. “No total, cerca de 200 pessoas foram envolvidas no caso das meninas, entre médicos, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, etc”, relata o cirurgião.
O fígado, que regenera, foi dividido para as duas, assim como os intestinos. Valentina ficou com ânus e genitália. Heloá, com genitália e bolsa de colostomia. “É cedo para dizer o que pode ser feito. Talvez um neoânus daqui a alguns anos”, diz Zacharias Calil. Segundo ele, não há relato na literatura médica de gravidez de mulheres siamesas, embora não seja impossível no caso das irmãs Prado Santos, principalmente Valentina. “Elas ficaram com útero e ovário, mas só o tempo para dizer, porque o abdome delas não está preparado.
Valentina, a maior das gêmeas, por pouco não sobreviveu. “Ela complicou em todos os sentidos. Ficou 26 dias em coma induzido, fez um mal epileptico que é uma emergência neurológica grave, fez obstrução intestinal, fez pneumotórax, rompeu o pulmão, fez embolia e obstrução da cânula”, enumera o médico. “Eu não podia demonstrar, mas fiquei preocupado. Não conseguia entender porque o intestino dela não funcionava. Passei a tratar como se ela tivesse má formação, lavando o intestino. Ela foi melhorando e começou a se alimentar pela sonda.” Hoje, Valentina e Heloá estão livres de aparelhos e comem de tudo.
Waldirene e Fernando sonham com uma vida normal para as filhas, a exemplo de Kayla. Sabem que não é e não será fácil. “Elas vão precisar de muita fisioterapia e quero levá-las para a natação”, afirma a mãe. Zacharias Calil lembra que crianças têm grande poder de adaptação e com meninas paulistanas não é diferente. “Elas vão andar, não como uma pessoa normal, mas vão.” O cirurgião relata que, normalmente, em casos de siameses, o gêmeo menor mantém o maior. A regra se confirmou com Heloá e Valentina. “Quem sofreu mais foi a Valentina, que vivia em função da irmã.”
Siamesas de Santo Antônio de Goiás abriram caminho para aprimoramento da técnica
Gestação de siameses é uma condição rara. Pode ocorrer 1 em cada 150 mil. Não há uma unanimidade sobre a causa, mas uma das teorias é que o óvulo fecundado não se divide a partir do 13º dia e as estruturas dos corpos ficam unidas ao se desenvolverem no útero da mãe. O cirurgião pediátrico Zacharias Calil passou a se dedicar a esse tipo de má formação quando viu as gêmeas Larissa e Lorrayne Gonçalves, moradoras de Santo Antônio de Goiás, na região metropolitana de Goiânia, num programa de TV.
Elas nasceram em setembro de 1999 que tinham três pernas e eram unidas pelo abdômen e pela pelve, compartilhando rins, estômago, bexiga, intestino grosso, uretra, vagina e ânus. Diante do enorme desafio, a mãe entregou as filhas para a irmã que as criou como suas. Larissa e Lorrayne foram separadas em julho de 2000 no Hospital Materno Infantil. Lorrayne teve mais sequelas. Com paralisia cerebral, não falava, não andava e usava bolsa de colostomia. Aos sete anos sofreu uma embolia pulmonar e não resistiu.
Hoje com 23 anos, Larissa, que tem somente a perna esquerda, não se adaptou à prótese direita. “Me limitava.” Ela terminou o ensino médio e não perdeu a vontade de estudar medicina, como sempre mencionou. Por enquanto, trabalha como assistente administrativa no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) de Santo Antônio, mantendo uma rotina como qualquer jovem de sua idade. “Já namorei, mas agora não”, detalha, rindo. Atualmente, somente uma bronquite a incomoda.
Zacharias Calil mantém contato frequente com todas as famílias dos 22 siameses que marcaram sua trajetória. Para ele, o caso dos meninos baianos Arthur e Heitor Brandão é especial e marcou a sua vida. “Talvez pelo envolvimento emocional que eu tive com essas crianças desde o nascimento.” A professor Eliana Brandão veio a Goiânia em 2009, um mês antes do parto, para se encontrar com o cirurgião. Os meninos nasceram unidos pelo tórax, abdome e bacia, compartilhando fígado e genitália.
A fase preparatória para a cirurgia de separação durou cinco anos. Nesse tempo, a equipe médica usou uma técnica, então pioneira, chamada prototipagem, na qual impressoras 3D reproduzem órgãos do corpo humano em tamanho real, simulando o procedimento. Apesar de todo o cuidado, Arthur, que dependia muito do irmão, não sobreviveu três dias depois da cirurgia, que ocorreu em fevereiro de 2015. Heitor ficou 92 dias na UTI pediátrica do HMI e voltou para casa, em Riacho de Santana (BA), onde tem vida normal.
Doações para Heloá e Valentina
Enquanto se desdobram nos cuidados com as filhas, Waldirene e Fernando dependem de doações, já que ainda estão sem trabalho. Heloá e Valentina consomem uma média de 30 fraldas por dia, sem contar os insumos necessários para curativo e higienização.
Gaze, fraldas P geriátrica ou de criança XXG com elástico, luvas, pomadas para assadura, esparadrapo, compressas estéreis são alguns dos itens essenciais no cotidiano da família. O creme barreira Cavilon, que ajuda a cicatrizar e custa em média 100 reais, também é fundamental.
Doações podem ser feitas pelo PIX 376 193 828-44 ou pelos telefones (64) 98162-8692 e (11) 97765-4770.