Uma parcela da sociedade é contra a educação sexual na vida de um jovem sob o argumento de que isso pode levá-lo à promiscuidade. No entanto, a discussão extrapola os achismos e encontra espaço em evidências científicas. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) possui uma cartilha técnica sugerindo esse tipo de ensino em todos os países, a fim de evitar a gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e violências sexuais.
Antes de qualquer discussão, Lilian Macri, que é médica e pós-graduada em sexualidade pela Universidade de São Paulo (USP), explica que sexo e sexualidade são termos diferentes, e que muitas pessoas contrárias a esse tipo de assunto nas escolas fazem confusão com as palavras.
O que uma criança deve aprender em aula e na família, diz ela, é a sexualidade, “que é a forma de você se relacionar com o mundo e com você mesmo para lidar com o consentimento, além de saber até onde ir com o seu corpo e com o do outro”. Já sexo é o ato em si e, ao envolver menores de idade, torna-se crime pelas Leis nº 12.015, de 2009, e nº 8.069, de 1990, com penas de até 30 anos de prisão e multa.
A sexóloga ressalta que se a criança vier com uma questão inusitada sobre sexo, deve-se primeiro perguntar de onde veio a dúvida, ter calma e não brigar, pois isso pode bloqueá-la em futuras conversas sobre o tema.
Diga ‘não’ agora para não sofrer no futuro
Lilian Macri analisa que o ensino da sexualidade antes dos seis anos é importante para ajudar a retardar o início da vida sexual e prevenir abusos. Essa educação se dá em pequenas situações do dia a dia, trabalhando limites e o consentimento, sem precisar falar diretamente de sexo.
É possível, por exemplo, que os responsáveis criem e expliquem regras antes das brincadeiras com os pequenos para cultivar o respeito. “Negocie com eles. Se alguém se cansar no meio da diversão e quiser parar de brincar, mostre que estará tudo bem e o outro deverá ser respeitado na decisão. Esse é um exercício que ensina a criança a ter empatia e a compreender o colega”, orienta. Com o tempo, esse tipo de aprendizado começa a fazer parte da vida do jovem e o ajuda a entender que é preciso sempre ter o consentimento do outro em uma relação para se fazer algo.
“Adolescentes desrespeitosos, que acham que podem fazer tudo, não tiveram limites na infância, porque os pais tinham medo de dizer ‘não’ e de criar limites e regras”, afirma. “Não dizer ‘não’ gera sofrimento no futuro: os jovens ficam frustrados ao levar um fora em uma festa e, na adolescência, podem fazer sexo como forma de provar para os outros que perdeu a virgindade. Ou seja, não sabem negociar o consentimento e se afirmar num grupo”, completa.
Essa questão, quando mal trabalhada, se reflete no caso de mulheres que se casam e acham que devem permanecer casadas, porque aprovaram a relação no passado. “Se o marido chega bêbado em casa e quer transar, ela deve saber negociar. Se o relacionamento ficar ruim, ela precisa ter a base psicológica de saber que possui o direito de sair disso”, ilustra.
O ‘não’ precisa ser praticado também entre os pequenos
Segundo Lilian, a criança que não tem receio de dizer ‘não’ diante de uma situação constrangedora ou incômoda constrói para si o poder de se posicionar - e isso pode ser exercitado a qualquer momento. Quando um filho se recusa a comer jiló no almoço, por exemplo, ele está praticando essa autonomia e criando uma estrutura mental para aplicá-la em outras situações.
Contudo, é importante que esse aprendizado não se confunda com a desobediência. “A criança deve estar ciente de que quem educa é a família, e a autoridade é de quem tem mais experiência [de vida]. O ‘não’ precisa ser praticado na autoridade, dentro de uma atmosfera de respeito e confiança, sem tender ao autoritarismo”.
‘Tio, coça minha virilha?’
Lilian Macri destaca ainda que ensinar o respeito com as partes do corpo é essencial para que a criança não naturalize abusos. F.C.**, do interior de São Paulo, sentiu de perto a importância disso. Ela é mãe da pequena V.S.**, de seis anos, e se recorda de quando estava na sala de casa, durante um domingo em família, e se deparou com a filha pedindo um ‘favor’ ao tio. “Coça minha virilha?”, pediu a garota, abaixando uma parte do short que vestia.
Constrangido, o tio negou e disse que isso “não é coisa que se pede”, e foi aí que F.C percebeu que a menina corria o risco de naturalizar possíveis abusos. “Meus parentes e a escola dela são muito respeitosos. Não imaginava que isso pudesse acontecer”, confessa a mãe.
Lilian explica que se os pequenos não aprendem a lidar e a entender os limites do próprio corpo, eles podem achar que esse tipo de contato é uma forma de atenção, carinho e “só descobrir que foram abusados na fase adulta”.
Como fugir dessa situação?
Segundo Lilian, uma forma de os responsáveis ensinarem a criança a ter uma boa relação com as partes íntimas é, antes de tudo, tomar conhecimento de que ela não precisa abraçar e nem beijar ninguém. “Para cumprimentar as pessoas, basta dizer bom dia, boa tarde e boa noite. Não é necessário beijar e abraçar sem que ela queira, pois esses contatos de carinho tem que se dar com quem a criança se sinta confortável para fazer com tranquilidade”, orienta. “Quando você obriga a criança a se submeter ao outro de forma indevida, a mensagem que você passa é de que ela deve se submeter também ao abuso”, completa.
A sexóloga afirma também que os pais precisam dizer à criança quem são as pessoas que podem tocar nas partes íntimas dela para a limpeza. “Tem que deixar claro que o contato é só para a higienização e, se alguém tocá-la de forma diferente, ela deve dizer ‘não’ e contar para a pessoa de um círculo de confiança já definido”.
Um outro ponto importante é que, segundo a psicanálise de Sigmund Freud, o ser humano passa pela fase fálica entre os três e seis anos. Ou seja, a libido começa a surgir nas genitálias ainda na infância. “Ela pode sentir a vontade de masturbação, o que é natural, mas tem que explicar a ela que isso não pode ser feito na frente dos outros, não se pode introduzir objetos e precisa estar com a mão limpa. A criança tem que entender que existem limites nisso também”, aconselha Lilian.
Ensine nomes corretos e fale sobre as consequências
Segundo a sexóloga, um passo importante para os pais e responsáveis lidarem de forma saudável com as crianças nessas questões é rever os conceitos. Quando uma mãe, por exemplo, não aprendeu a lidar bem com a própria vulva, ela ensina nomes errados e apelidos dessa parte íntima para a criança.
Além disso, Lilian explica que um ser humano precisa entender as consequências de seus atos desde cedo com contextos simples para aprender a lidar com questões mais sérias na adolescência e na fase adulta. “Ela precisa aprender a ideia de causa e efeito para, futuramente, saber fugir de drogas, práticas sexuais arriscadas e escolhas erradas no começo da vida sexual”, enfatiza.
Uma boa forma de educar desde cedo nesse sentido é mostrar para a criança que ela pode se prejudicar com uma birra, preguiça ou decisão errada. “Meu filho de nove anos, por exemplo, chegou em casa um dia e disse que não queria fazer a lição de casa. Eu falei: ‘tudo bem, então você conversa amanhã com a professora e fala com ela para ver como acertar isso’”, recorda.
‘Com quem será que vai casar?’ e a erotização infantil
Um caso aparentemente ingênuo, mas que pode envergonhar os pequenos é o da música de aniversário “Com quem será? / Com quem será? / Com quem será que o fulano vai casar? / Vai depender / Vai depender / Vai depender se a sicrana vai querer”. Lilian Macri alerta que criar uma situação constrangedora entre duas crianças é um estímulo ao namoro infantil.
“Criança não tem condição psicológica para assumir um namoro. Quando ela vier e falar para você que gosta de tal amiguinho, explique que a gente tem mas afinidade por um ou outro colega, que existem diferentes tipos de amor, de carinho e que cada um tem sua fase, que vai namorar na adolescência ou na vida adulta”, aconselha. Veja abaixo o vídeo dela sobre isso:
A educadora oferece serviços para algumas escolas e alega que essa brincadeira é comum em muitos colégios. “Tem mulheres, inclusive, que incentivam isso nos filhos. Sei de queixas de mães que ajudam a filha de seis anos a escrever bilhetinho para o menino. Isso estimula a erotização infantil”.
* Nomes preservados. Depoimento retirado das redes sociais