Localizado em Goiânia, o Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (Hecad), vinculado à Secretaria Estadual de Saúde (SES), nasceu para suprir a carência de um serviço específico voltado a este público. Desde a inauguração oficial, em fevereiro deste ano, a unidade, que tem portas abertas, vem recebendo alta demanda, expondo uma realidade de carência de médicos pediatras no serviço público, na capital e no interior, o que não necessariamente significa que faltam profissionais especialistas no mercado.
Na semana passada, o principal articulador para a criação do Hecad, o deputado federal Zacharias Calil (União Brasil), lamentou, junto ao governador Ronaldo Caiado, a distorção da proposta original de funcionamento da unidade. “A missão do Hecad é ser um hospital para casos de média e alta complexidade. Há uma grande falha porque pacientes que deveriam ser atendidos em unidades básicas estão sendo encaminhados para lá. Os profissionais do Hecad estão sobrecarregados”, disse ele.
Segundo o parlamentar, que é cirurgião pediátrico e integra o corpo clínico do Hecad, com a criação do hospital, ficou “cômodo” para a Prefeitura de Goiânia, que “não precisa mais contratar pediatras”. Em quase um ano de funcionamento, o maior número de pacientes da unidade é da capital. O Hecad começou a operar em 15 de janeiro, absorvendo a demanda antes concentrada no então Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento (HMI), hoje Hospital Estadual da Mulher (Hemu), dedicado exclusivamente a atendimentos de obstetrícia e neonatologia.
“O Hecad nasceu para oferecer atendimento complexo, como cirurgias cardíacas pediátricas, neurocirurgias, atenção a fissurados, etc. Isso não está sendo respeitado. O hospital será transformado numa unidade de pronto atendimento?”, questiona Zacharias Calil. O parlamentar disse que vem recebendo documentos e tem acesso a grupos de mensagens de colegas que relatam o encaminhamento para o Hecad de pacientes com patologias simples, que poderiam ser atendidos nas unidades básicas. “Todos precisam de atendimento, mas num serviço complexo, tomam vagas de outros em pior situação e consomem orçamento.”
Com 116 leitos de enfermaria e 30 na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o Hecad foi instalado no antigo Hospital do Servidor, que pertencia ao Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás (Ipasgo). O Governo de Goiás, por meio da SES, adquiriu o prédio no fim de 2021 pagando quase R$ 129 milhões. Administrado pela Organização Social (OS) Associação de Gestão, Inovação e Resultados em Saúde (Agir), o Hecad conta com 282 médicos, 74 deles no Pronto Socorro.
O Pronto Socorro do Hecad nunca fecha. Todos os dias da semana, durante 24 horas, atende pacientes. Desde a inauguração oficial até outubro passaram por lá 40.848 crianças e adolescentes. “E isso por demanda espontânea. Mais de 50% dos casos são classificados como verde e azul”, afirma a diretora-geral da unidade, Mônica Ribeiro Costa, ao mencionar os atendimentos de baixa complexidade, que são de responsabilidade dos serviços municipais de saúde.
6 perguntas para Mônica Ribeiro Costa, diretora-geral do Hecad
O Hecad está sobrecarregado?
Sim. Como trabalhamos com as portas abertas, temos recebido um número grande de crianças classificadas como verdes e azuis, que poderiam ser atendidas em unidades básicas. Estamos utilizando um serviço que seria de referência em situações complexas para atender casos menos urgentes, o que poderia ser feito em unidades básicas e secundárias nos municípios. Hoje, 70% dos pacientes são da região metropolitana de Goiânia.
O hospital tem capacidade para essa demanda?
Não há espaço físico para aumentar o número de pediatras no Pronto Socorro do Hecad. Estamos atendendo 24 horas por dia com os profissionais que eu planejei, 74 no Pronto Socorro. Só que a demanda é excessiva. A família não quer saber se o atendimento é verde ou azul. Ela precisa de atenção ou orientação e vai procurar onde encontra. Cabe ao poder público prover essas possibilidades. Os municípios deveriam oferecer os serviços de atenção primária e secundária, nas unidades básicas e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), e nós nos dedicaríamos ao que realmente foi proposto para o Hecad.
Há prejuízo no atendimento de casos mais complexos?
Não estamos deixando de fazer o nosso papel, mas poderíamos fazer de uma forma menos pressionada, sofrida, se nossa porta estivesse atendendo pacientes com perfil mais adequado. Estamos fazendo cirurgias de grande porte e eletivas, uma grande demanda da rede. A nossa taxa de ocupação de leitos, tanto de enfermaria quanto de UTI, fica sempre acima de 95%. É muito alta. Os leitos são para servir a comunidade e internar pacientes. Se vamos internar casos menos ou mais complexos, vai depender do número de leitos que outras unidades, básicas e secundárias, de responsabilidade das prefeituras, oferecem.
Faltam pediatras no mercado?
Tem pediatras, mas a demanda é muito grande. Uma criança precisa sempre de atenção médica. Dificilmente ela passa a primeira infância sem a necessidade de um atendimento de urgência ou de rotina. E agora estamos enfrentando o problema da baixa cobertura vacinal. A pediatria é uma área de grande demanda e por muito tempo os profissionais não foram valorizados como deveriam. Nas últimas décadas cresceu muito o atendimento em neonatologia e grande parte deles vai para esta especialidade e não para a pediatria geral.
Como foi formada a equipe do Hecad?
No início, tivemos dificuldade. Às vezes é complicado manter um profissional no hospital porque a oferta de trabalho para ele é grande. O Hecad é o melhor lugar para trabalhar, mas a questão da alta demanda do Pronto Socorro estressa o médico. Pacientes e familiares ficam impacientes por causa da demora.
O Hecad pode mudar essa realidade?
Precisamos aumentar a oferta de profissionais. A partir do ano que vem o Hecad vai iniciar a própria residência de pediatria, outro dos seus papéis que será efetivado. O programa já está aprovado pelo Ministério da Educação. Vamos oferecer 15 vagas para residentes de pediatria, cinco de UTI e dois em gastropediatria. Com isso vamos aumentar a oferta de profissionais para a rede.
‘Não faltam pediatras’, diz presidente da SGP
Presidente da Sociedade Goiana de Pediatria (SGP) e conselheira do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego), Valéria Granieri não concorda que haja carência de pediatras no mercado, embora estejam atendendo como subespecialistas. Em Goiás, segundo dados do Cremego, há atualmente 1.232 profissionais registrados. Alguns pagam dois Conselhos, de Goiás e do Distrito Federal, pela melhor remuneração.
“Na rede pública eles são desestimulados a trabalhar por causa das condições oferecidas. Sem plano de carreira, com salário baixo e as precárias condições de trabalho, migram para a rede particular.” Para a médica, outro aspecto desencoraja o movimento de pediatras rumo à rede pública. “A pjotização da medicina é muito grave”, afirma Valéria Granieri, sobre os contratos de profissionais como Pessoa Jurídica pelas OSs que administram hospitais públicos. “O médico não tem direito a férias, 13º salário e licença maternidade e a maioria dos pediatras é formada por mulheres. Muitas vezes ele fica sozinho na unidade e trabalha com medo pela insegurança do local.”
A presidente da SGP lembra que além da seleção para residência de pediatria no Hecad, outras estão abertas, como na Universidade Federal de Goiás, no Hospital e Maternidade Dona Iris (HMDI) e na Universidade de Rio Verde (UniRV). “Nós formamos muitos pediatras”, diz Valéria Granieri, que nunca atuou no serviço público pelas condições oferecidas. As subespecialidades, como neonatologia, infectopediatra, pneumopediatria e hebiatria (médico que cuida de adolescentes) são algumas das opções que afastam os profissionais da pediatria em geral.
Sobre a ausência de pediatras em municípios do interior, a presidente da SGP explica que não é somente o salário oferecido que fixa o profissional na cidade. “Tem muito a ver com as condições de trabalho. Trabalhar no interior é diferente porque às vezes o médico é o único pediatra, não pode sair e nem sempre tem como encaminhar o paciente para outra unidade. Muitos profissionais relatam que o salário que recebiam era bom, mas não tinham vida. Eles têm a responsabilidade de fazer tudo, desde a emergência à sala de parto. O dinheiro não é o mais importante.”
Para Paulo Tadeu Falanghe, que integra a Diretoria de Defesa da Pediatria, da Sociedade Brasileira de Pediatria, a ausência de um plano de carreira não fixa especialista no serviço público onde ele passa a trabalhar como “atendente de problema”, em consequência de uma assistência deficitária. Na rede suplementar, a questão é a defasagem dos honorários. “Sua remuneração limita-se, em geral, ao valor pago pelas consultas e não contempla a atividade em consultório e a disponibilidade que precisa despender fora do experiente para sanar dúvidas de pais ou responsáveis. Por isso muitos buscam por subespecialidades, se afastando da pediatria em geral.”
Salário para profissional chega a R$ 50 mil em Chapadão do Céu
Verônica Savatin, presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de Goiás (Cosems-GO), relata que, de todas as especialidades, o pediatra é o mais difícil de contratar no interior, mesmo pagando salários altos. ”Em Chapadão do Céu, onde sou secretária, fiquei seis meses sem pediatra, mesmo oferecendo um salário de R$ 50 mil. Tive de trazer uma profissional do Acre. Pago R$ 70 mil para um cirurgião vir para o interior. Somos reféns da categoria médica”, afirma a presidente do Cosems-GO. Ela concorda que o acúmulo de trabalho pode ser um dos motivos. “Dificilmente um clínico geral atende crianças. Ele sempre encaminha para o pediatra.”
Sobre a sobrecarga do Hecad, Verônica Savatin diz que já solicitou à SES um levantamento em relação à demanda da unidade para saber a origem dos pacientes. “Os pacientes de Goiânia são atendidos prioritariamente e, quando os municípios do interior solicitam a vaga, o hospital está lotado. Nós temos dificuldade em contratar esse profissional, mas não vemos uma movimentação de Goiânia para organizar esse serviço.”
O deputado federal Zacharias Calil (UB), que foi reeleito, promete ainda para o atual mandato destinar R$ 9,9 milhões de emendas para fortalecer a área da pediatria nos municípios do interior. “São recursos para as unidades, para que os pacientes não cheguem a Goiânia em situações que podem ser resolvidas nos municípios. Mutirões de procedimentos não funcionam, mas sim a classificação de risco no dia a dia para evitar a sobrecarga em hospitais especializados.”
Secretaria municipal afirma ter atendimento
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia informou que mantém atendimento de urgência pediátrica 24 horas por dia, todos os dias da semana, no Centro de Atenção Integrada à Saúde (Cais), do bairro de Campinas, com uma média de três médicos por plantão de 12 horas. “Somente em outubro foram 6.069 atendimentos de crianças na urgência da unidade.” Conforme a SMS, as UPAs Dr. Paulo Garcia, na Chácara do Governador, no Jardim Itaipu, contam com atendimento pediátrico “em quase 100% dos plantões”. Cada profissional recebe R$ 1,4 mil por plantão, conforme a pasta.
A SMS explicou ainda que, além do atendimento de urgência, 36 pediatras atuam em 22 unidades de atenção básica. As consultas podem ser marcadas pelo número 0800-646-1560 e também pelo WhatsApp 3542-6305. “No mês de outubro/2022 foram ofertadas 5.600 vagas de consultas de média e baixa complexidade nessas unidades, mas somente 48% das vagas foram preenchidas. Portanto, 52% ficaram ociosas por falta de procura”, enfatizou na nota a SMS.
Conforme o órgão, entre 2.600 e 3 mil consultas de crianças e adolescentes são realizadas mensalmente no Centro Integrado de Pediatria (Ciped), no Jardim América, inaugurado em agosto de 2021. A SMS informou ainda que busca aumentar a oferta de pediatras na rede municipal de saúde e, para isso, mantém credenciamento aberto para novas contratações.
Portas abertas
Sobre o fato de o Hecad ser um hospital de portas abertas, que recebe pacientes sem passar pelo serviço de regulação, a SES informou que “trata-se de uma decisão de gestão e não fere os princípios do SUS”. A razão, conforme a SES, “é para garantir assistência pediátrica visto as fragilidades que a rede municipal ainda apresenta”. “Ciente da falta do profissional médico pediatra, que é o principal gargalo deste cenário, a SES tem trabalhado junto ao Conselho de Secretários Municipais de Saúde de Goiás (Cosems-GO) para, em conjunto, traçar estratégias e suporte visando solucionar esse problema”.