Goiás teve um jovem ferido ou morto em acidentes de trânsito a cada 18 minutos nos primeiros quatro meses de 2023. Foram 9,6 mil vítimas com idade de 18 a 29 anos, um intervalo de 12 anos. Para se ter ideia, o número é apenas 35,5% menor que as 14,9 mil vítimas na faixa etária de 35 e 64 anos, um intervalo de 30 anos. No total, Goiás registrou 28,1 mil acidentes de trânsito e 32,2 mil vítimas no primeiro quadrimestre deste ano. Os dados são do Observatório de Segurança Pública.
Em 2022, o estado teve 29,7 mil vítimas de acidentes de trânsito com idade de 18 a 29 anos. O número é 8,8% superior aos 27,3 mil casos de 2021, dado semelhante ao encontrado em 2019 (27,3 mil), período anterior à pandemia da Covid-19. Em 2020, a quantidade de vítimas teve uma queda para 26,2 mil. Especialistas alertam para o risco da ocorrência de acidentes graves que impactam diretamente na vida dos jovens.
O engenheiro especializado em transporte e professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), Marcos Rothen, explica que a pouca idade influencia nos acidentes. “Os jovens são fisicamente e emocionalmente mais impetuosos. Na maioria das vezes, se arriscam mais. Além disso, são pessoas que acabaram de tirar a carteira de trânsito e ainda têm pouca prática”, diz.
No dia 11 de maio deste ano, o motociclista Ademarcio Filho, de 20 anos, estava se dirigindo para o trabalho quando foi surpreendido por um carro na Avenida das Américas, no Recanto das Minas Gerais, em Goiânia. “Ele passou e me derrubou. Quebrei o punho esquerdo em quatro lugares e rompi um ligamento”, conta o jovem.
Até então, Ademarcio, que trabalha durante o dia como entregador por aplicativo de entregas e a noite em uma transportadora, nunca havia se acidentado. “Fiquei ainda mais receoso com o trânsito. Eu já tinha medo, pois a maioria dos motoristas não respeita os motociclistas. Agora, tenho planos de dar a moto como uma entrada e comprar um carro”, reclama.
O jovem foi levado para o Hospital Estadual de Urgências de Goiás (Hugo). Ele ficou internado por 12 dias. Atualmente, possui três pinos na mão esquerda e não pode movimentar o braço por 90 dias. “Como tenho um trabalho de carteira assinada, possuo a estabilidade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ainda assim, fazer coisas básicas, como tomar banho, é um desafio. Moro sozinho e dependo da ajuda da minha namorada com as atividades nos finais de semana.”
Impactos
Na madrugada do dia 12 de junho de 2016, Everaldo Barbosa, na época com 25 anos, estava indo de Santo Antônio de Goiás em direção à Goiânia, onde trabalhava profissionalmente em vigilância armada. Por volta das 4 horas, ele se sentiu cansado a ponto de adormecer no controle da motocicleta, que estava a 120 quilômetros por hora (km/h). O homem acordou a tempo de avistar uma rotatória no Setor Vila Itatiaia. Entretanto, acabou freando o veículo bruscamente e batendo a moto no local.
“Sofri uma lesão na coluna, na área torácica, que me deixou paraplégico”, conta Everaldo, sete anos após o ocorrido. Ele relata que, com o acidente, vários obstáculos começaram a aparecer. “Dificultou muito minha locomoção em casa, tive de mudar todo o modo que tinha de me locomover, por causa da cadeira de rodas. Um relacionamento meu terminou por causa disso também, e todo esse cenário me levou a ter bastante depressão”, diz.
Atualmente, Everaldo não faz nenhum tratamento relacionado ao acidente. Porém, afirma que recebeu atendimento psicológico no Hugo durante momentos depressivos e passou por algumas sessões de fisioterapia. “Um tipo de terapia que tenho feito tem sido através do esporte”, afirma. Antes da entrevista, ele estava jogando basquete juntamente com outros pacientes no Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), onde faz parte do time oficial de cadeirantes da instituição nessa modalidade. “Tem me ajudado muito”, complementa.
William Rodrigues, de 37 anos, é colega de Everaldo no time. A cadeira se tornou um acessório apenas para a prática esportiva. No entanto, ele dependeu dela após sofrer um acidente em uma motocicleta. “Eu estava na garupa. Um veículo nos atingiu por trás”, conta sobre a colisão em 2013.
A Vigilância de Violências e Acidentes da Superintendência de Vigilância em Saúde (Suvisa), da Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO), tem como intuito justamente monitorar os acidentes de trânsito com vítimas que ocorrem no estado, tabular dados e fornecer estatísticas para que as autoridades desenvolvam políticas públicas.
A coordenadora da área, Maria de Fátima Rodrigues, aponta que o estado registrou 449 internações por conta de acidentes de trânsito entre pessoas com idade de 18 a 29 anos no primeiro quadrimestre de 2023. “As principais vítimas são motociclistas, a maioria deles do sexo masculino, com idade entre 19 e 39 anos. A velocidade é o principal fator de risco e muitos deles são condutores sem habilitação”, conta.
Ela esclarece ainda que mais de 50% dos óbitos ocorrem no local do acidente ou então 24 horas após a internação. “Isso demonstra que são ocorrências graves, que podem ceifar a vida de pessoas em idade produtiva ou então deixá-las com sequelas que vão levar a, por exemplo, uma aposentadoria precoce. A internação e todo o processo de reabilitação por conta de acidentes evitáveis também são onerosos para o poder público”, diz.
Dados
O participante do Mova-se Fórum de Mobilidade, Fernando de Melo, destaca que é importante ter dados estratificados sobre o perfil dos envolvidos nos acidentes de trânsito. “Informações sobre locais, horários e veículos envolvidos também são essenciais”, aponta. Atualmente, a plataforma da Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) que tem dados sobre as ocorrências de acidentes de trânsito está em manutenção. (Colaborou João Pedro Santos, estagiário do GJC em convênio com a UFG).
Motociclistas estão mais expostos ao risco
Os condutores de motocicletas são os mais expostos aos acidentes graves de trânsito junto com os ciclistas por conta das estruturas de ambos os veículos. Com o avanço da atividade dos entregadores por aplicativos de entrega, especialistas consideram que o risco aumentou ainda mais.
“A atual situação econômica do País popularizou o uso desses aplicativos como instrumento de trabalho por muitas pessoas, especialmente os jovens. Porém, os prazos sempre apertados e a necessidade de fazer a maior quantidade possível de entregas, faz com que eles sejam cada vez mais rápidos, o que contribui para o ocasionar acidentes”, diz o engenheiro especializado em transporte e professor do Instituto Federal de Goiás (IFG), Marcos Rothen.
O pesquisador do Observatório das Metrópoles/Goiânia e membro da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTPA), Antenor Pinheiro, destaca que a precarização do trabalho no Brasil tem uma parcela de responsabilidade nas mortes de jovens trabalhadores motorizados, especialmente os que se ocupam de entrega de mercadorias e serviços delivery.
“A começar da regulamentação da atividade e do saneamento dos contratos (quando existem) entre as empresas e os prestadores de serviços, geralmente baseados no protocolo da agilidade de entregas que relaciona tempo de atendimento e comissões percebidas como salários. Essa relação promíscua estimula o cometimento de infrações de trânsito, em especial o avanço de semáforo, a velocidade excessiva e o deslocamento sobre calçadas”, argumenta.
Antenor destaca que muitas vezes esses veículos não recebem a manutenção adequada. “A precária manutenção das motocicletas e capacetes em nenhum momento é fiscalizada. Esses são gravíssimos insumos da violência do trânsito”, diz.
O especialista ressalta a importância dos órgãos de fiscalização e também do Ministério Público do Trabalho (MPT), este último atuando na relação trabalhista como política de regulamentação e humanização desta importante atividade econômica.
Antenor aponta que a tendência é do crescimento da atividade de entregador por aplicativo. “Também o aumento dos riscos de acidentalidade, afinal as motocicletas representam mais de 50% dos eventos de trânsito graves no Brasil, com a frota quase dobrando em 10 anos e mais motociclistas envolvendo-se com os sinistros de severidades graves e gravíssimas”, destaca.
Rothen diz que uma reversão do cenário depende de ações fiscalizatórias e educativas, mas também da conscientização dos motoristas. “Atualmente, vemos que as pessoas correm para fazer manobras, ultrapassam o limite de velocidade, sobem em calçadas. Isso aumenta enormemente o risco de acidentes”, finaliza o especialista em trânsito.
Incentivo ao uso de carros e motos contribui para o cenário atual
Historicamente, a forma como as cidades e as rodovias são planejadas no Brasil estimulam um uso maior do transporte individual motorizado, como carros e motos. Para o pesquisador do Observatório das Metrópoles/Goiânia e membro da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTPA), Antenor Pinheiro, essa dinâmica influencia diretamente no aumento de acidentes de trânsito, especialmente entre os jovens.
“O carro ainda é uma forte referência de ascensão social e os governos, em todas as esferas, continuam a praticar gestões de facilitação do seu uso. Não há políticas públicas que busquem alterar esses conceitos obsoletos de mobilidade, não há atitudes que desestimulem o uso desenfreado e irracional do carro e da moto como meios de transporte”, relata Antenor.
Para ele, a consequência direta dessa dinâmica é a deterioração das outras formas de locomoção. “O transporte público coletivo continua percebido como ‘coisa de pobre’, as bicicletas sem infraestruturas adequadas e estímulo de uso, e as calçadas cada vez mais deterioradas. A consequência disso é o acirramento e as disputas pelos espaços urbanos de mobilidade onde a lei do mais forte prevalece. Logo, é previsível que a violência no trânsito se estabeleça para todos”, argumenta Antenor.
O especialista destaca que esse cenário leva à superlotação dos hospitais de urgência. “Cerca de 75% dos leitos estão ocupados por vítimas de trânsito. Entre as mortes, feridos e mutilados, pesquisas confiáveis indicam que 35% correspondem a jovens em plena idade economicamente ativa entre 18 e 25 anos, realidade semelhante aos números de Goiás. Esses dados comprometem as políticas de saúde e previdência públicas, o que afeta até mesmo os padrões da macroeconomia nacional e estadual”, destaca Antenor.