Geral

Uma criança de 10 a 14 anos dá à luz a cada dia em Goiás

Wesley Costa
Em Goiás, o Hospital Estadual da Mulher (Hemu) é a única unidade de saúde de referência para fazer um aborto legal

Na última década, Goiás registrou 5,9 mil nascimentos de bebês com mães de 10 a 14 anos de idade. No mesmo período, foram contabilizadas seis mortes maternas nessa faixa etária. Os dados são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), ferramenta do Sistema Único de Saúde (SUS). Especialistas apontam que a gravidez na infância e adolescência está associada a casos de abuso sexual e, quanto mais nova a gestante, maior o risco de vida ao dar prosseguimento a gravidez.

Segundo os últimos dados consolidados, de 2022, foram 397 nascidos vivos de mães com idade entre 10 a 14 anos. Eles representam 0,44% dos 89,7 mil nascimentos ocorridos no ano retrasado. Quando comparado com dez anos antes (2012), o número teve uma queda de 51,6%. Naquele ano, foram 821 nascidos vivos. Mesmo assim, o número mais recente chama atenção, com o nascimento de praticamente um bebê por dia de uma mãe criança ou pré-adolescente.

No Brasil, a quantidade de bebês com mães de 10 a 14 anos de idade também caiu. Em 2012, eram 28,2 mil nascidos vivos. Em 2022, foram 14,2 mil, número 49,3% menor. No ano retrasado, foram registrados dois casos de bebês que nasceram de mães com menos de 10 anos no País. Pela Código Penal, qualquer tipo de relação sexual ou pratica de outro ato libidinoso com menores de 14 anos é estupro de vulnerável. Por isso, uma parte considerável dessas gestações são fruto de violência sexual.

O assunto voltou ao centro do debate público devido ao Projeto de Lei (PL) Antiaborto por Estupro, que determina a prisão ou internação (no caso de menores de 18 anos) de vítimas de estupro que fizerem aborto depois de 22 semanas de gravidez. Atualmente, o abordo legal é garantido, em qualquer idade gestacional, nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da pessoa gestante e anencefalia do feto.

Divulgado nesta terça-feira (18), o Atlas da Violência 2024, relatório foi feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), demonstrou que meninas de 10 a 14 anos são as que mais sofrem proporcionalmente com a violência sexual.

Médica do Centro de Referência para o Cuidado de Crianças e Adolescentes e suas Famílias em situação de Violência (Cercca) de Recife, no Pernambuco, Maria Carmelita Maia e Silva estudou o contexto de mais de 100 mães com idade entre 10 e 14 anos acompanhadas na capital pernambucana e escreveu uma tese de doutorado sobre o assunto em 2009. De acordo com a pesquisadora, a maior parte dessas gestações acontece entre meninas em situação de vulnerabilidade, que costumam começar o pré-natal tardiamente por medo e/ou vergonha.

Ao jornal, ela apontou que a maioria dessas gestações foram acompanhadas do abandono escolar ou deterioramento da atividade educacional e do crescimento da ocupação em subempregos. Além disso, ela conta que muitas dessas meninas sofreram com a tentativa de viabilização de um parto normal sem elas terem condições físicas para tal. “Uma tortura para elas”, ressalta Maria Carmelita, que também chama atenção para o fato de que essas meninas costumam ficar com a saúde mental fragilizada por conta das gestações.

A diretora da Sociedade Goiana de Pediatria (SGP), Mirna de Sousa, explica que a gravidez na infância e na adolescência é um problema que deve ser tratado à luz da saúde pública. “O impacto é muito grande. É preciso esquecer crenças religiosas para olhar quem está em risco. Crianças e adolescentes fazem parte da nossa sociedade e são nossa responsabilidade”, diz.

Mirna aponta que esse tipo de gestação é de alto risco, com possibilidade de prematuridade do bebê e complicações que podem levar a mãe à morte. “É um corpo que não está preparado para gestar”, frisa. Apesar de muitas dessas meninas já terem ciclo menstrual, ela pontua que o útero delas ainda não está maduro para gerar um bebê. O contexto leva a chance aumentada de abortamento, pré-eclâmpsia e depressão pós-parto.

Nesse sentido, a diretora da SGP discorre que existe um gargalo na atenção primária atualmente. “Dentro do consultório, é importante que o médico (pediatra) aproveite este vínculo com as famílias para fazer orientações”, diz Mirna. A rede municipal de saúde de Goiânia, por exemplo, não possui um ambulatório específico para tratar vítimas de violência sexual.

No Estado, existem três ambulatórios do tipo. Eles ficam no Hospital Estadual da Criança e do Adolescente (Hecad), Hospital Estadual da Mulher (Hemu) e o Hospital Estadual de Luziânia (HEL). O Hemu, na capital, é a referência para a realização de abortos legais em Goiás.

Óbitos maternos entre adolescentes e jovens

Os óbitos maternos entre adolescentes e jovens, de 15 a 19 anos de idade, alcançaram a marca de 55 registros quando considerado o período de 2014 a 2024. É uma média de 5,5 mortes por ano. As informações são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), ferramenta do Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados de 2023 e 2024 são preliminares e estão sujeitos a alteração.

No mesmo período, nasceram 138,7 mil bebês com mães nessa faixa etária. De acordo com os últimos dados consolidados, de 2022, foram 10,1 mil nascidos vivos. Eles representam 11,3% dos 89,7 mil nascimentos ocorridos no ano retrasado. O número apresentou leve queda em relação a 2021, que teve 10,2 mil registros, mas queda mais acentuada quando comparado com 2012, quando foram registrados 16,7 mil nascimentos, uma redução de 39,1%.

O ginecologista e obstetra Jony Rodrigues Barbosa conduziu um estudo sobre a maternidade na adolescência na região Noroeste de Goiânia. Para uma dissertação de mestrado, ele acompanhou 170 pessoas do sexo feminino de até 19 anos internadas para realização de parto ou quadro clínico de abortamento, de agosto de 2013 a maio de 2014, na Maternidade Nascer Cidadão. A média de idade do estudo foi de 17,3 anos, sendo que o motivo principal apontado para o primeiro ato sexual foi o sentimento pelo parceiro.

Do total, 99,4% conheciam algum contraceptivo e 75,9% mencionaram ter familiares de primeiro grau que tiveram filhos antes dos 20 anos. Além disso, 53,5% estudavam quando engravidaram e 64,8% das pessoas nesse subgrupo abandonaram os estudos durante a gravidez.

Na avaliação do especialista, que faz parte da Sociedade Goiana de Ginecologia e Obstetrícia (SGGO), o acesso a essas adolescentes é difícil, já que muitas delas não estão na escola, o que demonstra a importante da Estratégia de Saúde da Família (ESF) para alcançá-las, informá-las e convencê-las sobre a importância do uso dos métodos contraceptivos. “Busca ativa”, destaca.

Goiânia

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que a rede de atenção, por meio das unidades de saúde da Atenção Primária, realiza atendimento médico e de enfermagem visando a orientação de adolescentes quanto à iniciação sexual e saúde reprodutiva, sendo que os preservativos, tanto masculino quanto feminino, também estão disponíveis para distribuição à população nestas unidades.

A pasta comunicou ainda que ações intersetoriais também são realizadas em parceria com as secretarias municipal e estadual de Educação. “Por meio de ações educativas, temas semelhantes são trabalhados com o intuito de reforçar nos jovens e adolescentes o autocuidado não somente relacionado às Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), mas também abordando o risco de gravidez na adolescência”, detalhou a pasta.

De acordo com a SMS, quando a adolescente identifica ou suspeita de gravidez, a rede acolhe a demanda com o início e acompanhamento do pré-natal. Além disso, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) acolhem e acompanham as vítimas de violência sexual quando em sofrimento mental.

Estado

Segundo a Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO), tem sido desenvolvido junto às regionais de saúde e municípios goianos, atividades para o monitoramento dos casos de violência sexual e de gravidez na adolescência no Estado, “com reuniões periódicas entre os envolvidos, onde são analisados os dados e sugeridas ações e políticas públicas para reverter o cenário”.

Ademais, a pasta informou que mantém parceria, por meio do Programa Saúde na Escola (PSE), com a Atenção Primária e a Secretaria de Estado da Educação (Seduc), “onde são desenvolvidas ações frequentes sobre o tema de educação sexual e reprodutiva junto aos estudantes da rede pública estadual”.

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